As inundações ocorridas em Porto Alegre e Valência em 2024 estão entre os milhares de eventos climáticos extremos que viram recordes de temperatura, seca e dilúvio serem quebrados em todo o mundo; tais horrores continuam em 2025, como os incêndios na Califórnia.
Cientistas associam esses desastres às emissões de carbono e à intensificação das mudanças climáticas. Mas um olhar mais atento a Porto Alegre e Valência mostra que outras causas contribuíram para as inundações e secas no local e em outras partes do planeta — problemas que exigem mudanças sutis, mas em toda a Terra, na forma como as pessoas vivem e a sociedade se desenvolve.
Pesquisadores apontam especialmente para a drástica desestabilização do ciclo mundial da água, que está trazendo cada vez menos precipitação para muitas regiões, para então, de repente, mudar para muita chuva de uma só vez — às vezes, atingindo o índice de precipitação previsto para um ano em apenas um dia, como aconteceu em Valência, quando 445,5 mm caíram em 24 horas.
O problema não são apenas as emissões de CO2, mas também o desmatamento local e a infraestrutura urbana que promovem as inundações. Porém, a destruição em larga escala de florestas, áreas alagadas e outros tipos de vegetação é um dado que costuma ser subestimado, mas está alterando perigosamente os padrões de chuva — uma teoria proposta décadas atrás por um cientista espanhol pouco conhecido.
Em 2024, duas cidades em diferentes continentes se viram ligadas por meio de uma tragédia em comum: Porto Alegre, no Brasil, e Valência, na Espanha, ambas acometidas por fortes chuvas que deixaram traumas e traços de destruição, ainda sentidos mesmo um ano depois. Enquanto pessoas se perguntam por que isso vem acontecendo com mais intensidade e frequência, cientistas tentam fornecer respostas. Não com certa surpresa, eles têm encontrado padrões semelhantes de causalidade entre os incidentes ocorridos — padrões que servem como um aviso para o mundo, mas que se revelam mais complexos e assustadores do que o esperado.

Dilúvios gêmeos
Porto Alegre foi a primeira a ser atingida. As chuvas torrenciais começaram em abril de 2024 e duraram seis semanas, transbordando rios e grandes deslizamentos de terra. A barragem de uma hidrelétrica se rompeu parcialmente. Pelo menos 180 pessoas morreram e meio milhão foi expulso de suas casas. Foi a pior enchente registrada na história do Rio Grande do Sul, com 1,6 milhão de hectares afetados.
Como em todos esses desastres climáticos recentes, histórias de perdas ressoam em um mundo em aquecimento, onde as pessoas começam a se perguntar se sua comunidade será a próxima. Só o Brasil registrou um aumento de 460% nos desastres relacionados ao clima desde a década de 1990, de acordo com um estudo recente.
As inundações de Valência em outubro de 2024 impactaram 450 mil hectares, menos do que a área inundada no Rio Grande do Sul. No entanto, o tamanho não define o terror: a velocidade com que o dilúvio se desdobrou e afetou vidas humanas foi maior do que no Brasil. Os alertas de inundação chegaram tarde demais. Pelo menos 205 pessoas morreram — o pior desastre da Espanha em décadas.
De acordo com o Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, por sua sigla em inglês), eventos climáticos extremos que geram inundações e secas de grande impacto estão se tornando mais frequentes e graves devido às mudanças climáticas causadas pela espécie humana, que desestabilizaram o ciclo hidrológico histórico.
Em Valência e Porto Alegre, cientistas continuam fazendo análises forenses cuidadosas dos desastres. A impressão digital da mudança climática, induzida pelo excesso de carbono na atmosfera, está em todas as catástrofes, mas novas impressões estão sendo detectadas — algumas identificadas décadas atrás por um climatologista pouco conhecido.


Causas imediatas: eventos climáticos extremos
Cientistas concordam que a causa imediata das inundações em ambos os países foi uma confluência de condições meteorológicas extremas, descritas apenas agora.
No Brasil, vários sistemas climáticos colidiram sobre o Rio Grande do Sul: uma umidade excepcionalmente alta se encontrou com os ventos do oeste, em parte devido ao aquecimento do Oceano Pacífico durante o El Niño, os quais se depararam com uma onda de ar úmido da Amazônia. Esses ventos carregados de umidade se chocaram então com frentes frias vindas do sul.
As frentes frias normalmente viajam para o norte sem dificuldade, mas desta vez, explica Paulo Brack, professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, elas encontraram uma obstrução e pararam. “O bloqueio atmosférico, chamado de cúpula de calor, estava relacionado ao desmatamento e à falta de vegetação [no centro do Brasil]. Isso bloqueou as chuvas, impedindo-as de viajar para outros estados.”
Marcelo Seluchi, do Cemaden, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, completa a história: “Sem ter para onde ir”, disse à Mongabay, “as chuvas acabaram caindo caoticamente no Rio Grande do Sul, com precipitação de 420 milímetros entre 24 de abril e 4 de maio”.
Em Valência, as inundações foram atribuídas a um “sistema de tempestades de baixa pressão”, quando ventos frios de outono desceram do norte da Europa e colidiram com uma massa de ar e umidade fortemente aquecida sobre o Mediterrâneo. O resultado foi uma tempestade repentina, levando a região a atingir o nível de precipitação previsto para um ano (445,5 mm) em apenas um dia.

Um segundo conjunto de causas: mudanças no uso da terra
Cientistas reconhecem que as mudanças no uso da terra podem tornar esses eventos meteorológicos extremos.
No Rio Grande do Sul, há uma estimativa de perda de cerca de 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa, aproximadamente 22% da cobertura total do estado, entre 1985 e 2022. Grande parte da floresta desmatada foi substituída por fazendas de soja, com a safra agora sendo a principal exportação agrícola do Brasil.
Eduardo Vélez, pesquisador do MapBiomas, que usa imagens de satélite para rastrear mudanças no uso do solo, disse à BBC News Brasil que um terço dessa conversão ocorreu na Bacia do Rio Guaíba, onde a cidade de Porto Alegre está localizada. Pesquisadores sugerem que, se a vegetação ao longo das margens do Guaíba tivesse sido preservada, os níveis de água teriam sido até 1,5 metro mais baixos, limitando a escala do desastre ocorrido em Porto Alegre.
As mudanças no uso da terra também exacerbaram as inundações em Valência. Hossein Bonakdari, professor do curso de Engenharia Civil da Universidade de Ottawa, Canadá, comenta: “O rápido desenvolvimento urbano (…) contribuiu significativamente para a gravidade das inundações, aumentando as superfícies impermeáveis, como estradas e edifícios, que impedem que a água seja absorvida pelo solo. Nas áreas rurais, práticas como a compactação do solo devido à expansão agrícola e ao desmatamento reduziram a capacidade da paisagem de reter naturalmente a água, causando um escoamento rápido que intensifica as inundações a jusante”.

Culpa das emissões de carbono e das mudanças climáticas
A maioria dos cientistas hoje concorda que, embora essas mudanças no uso da terra desempenhem um papel nas inundações, o aumento das emissões de carbono é o fator causal mais importante.
“Sem dúvida, essas chuvas explosivas foram intensificadas pelas mudanças climáticas”, afirmou Friederike Otto, do World Weather Attribution do Centre for Environmental Policy, Imperial College London, à Euronews. Ela acrescenta: “A cada fração de grau de aquecimento dos combustíveis fósseis, a atmosfera pode reter mais umidade, levando a rajadas mais pesadas de chuva. Essas inundações mortais são mais um lembrete de como as mudanças climáticas já se tornaram perigosas com um aquecimento de apenas 1,3°C [desde os tempos pré-industriais]”.
Linda Speight, professora da Escola de Geografia e Meio Ambiente da Universidade de Oxford, concordou em entrevista à Euronews: “Infelizmente, essas [tempestades violentas] já não são eventos raros. As mudanças climáticas estão mudando a estrutura de nossos sistemas climáticos, criando condições em que tempestades intensas param em uma região, ocasionando chuvas recordes — um padrão que estamos vendo repetidas vezes.”
Contudo, outros cientistas sugerem que, embora o foco no aumento das emissões seja válido, ele dá a falsa impressão de que a mudança climática pode ser combatida apenas com a redução das emissões de CO2, o que, segundo eles, esconde outra impressão digital de intensificação do clima extremo.
A ênfase nas emissões, explicam os cientistas, minimiza a possibilidade de que as mudanças climáticas estejam sendo impulsionadas por mais do que apenas o aumento dos níveis de CO2. As mudanças climáticas, argumentam, também são impulsionadas por mudanças no uso da terra em larga escala (especialmente desmatamento), juntamente com mudanças em outros sistemas terrestres interligados — com cada sistema potencialmente reforçando outros. A saúde do planeta só será restaurada, complementam, se essa complexa inter-relação for reconhecida e as múltiplas causas tratadas de maneira mais holística.
Reduzir as emissões não é suficiente, dizem esses cientistas. Na verdade, a mudança no uso da terra (e o efeito desproporcional que ela tem no ciclo da água) pode ter um impacto maior e mais imediato no clima — ajudando especialmente a desencadear eventos extremos como inundações e secas.
Para enfrentar adequadamente a crise crescente, devemos reparar os ecossistemas locais e reinventar a infraestrutura (regenerando florestas ribeirinhas e tornando as cidades à prova de inundações, por exemplo). Devemos também restaurar florestas nacionais — e até mesmo continentais —, áreas alagadas e outros tipos de vegetação para estabilizar o ciclo hidrológico. Essa mensagem muitas vezes vai contra o paradigma de desenvolvimento econômico dominante no mundo, um grito de guerra padrão para os políticos.

Seca e dilúvio: ‘os gêmeos terríveis’
Millán Millán, cientista espanhol, ou a maior parte de sua vida alertando que ignorar essa verdade hidrológica ameaçaria a própria sobrevivência da humanidade. Antes de morrer em 2024, aos 83 anos, ele temia que poucos tivessem escutado, lamentando: “Falhei com todos nós”.
Quando Millán se formou como cientista na década de 1960, havia um amplo consenso de que a vegetação, o solo e a água desempenhavam papéis cruciais na regulação do clima global, moderando o clima.
De fato, os cientistas acreditaram nisso por séculos. O filósofo grego Teofrasto, há mais de 2 mil anos, demonstrou que, quando as florestas eram desmatadas, o clima mudava: “A maior parte do distrito secava e se transformava em área cultivável”, escreveu ele. “[A] derrubada das florestas revelava a terra, expondo-a ao sol e provocando um clima mais quente.”
Em 1800, o explorador Alexander von Humboldt escreveu sobre a devastação devido ao desmatamento na Venezuela: “Quando as florestas são destruídas, como foi feito em toda a América pelos colonos europeus, de forma obscena, as nascentes secam completamente ou se tornam menos abundantes. Os leitos dos rios, permanecendo secos durante uma parte do ano, são convertidos em torrentes de água sempre que grandes chuvas caem nas regiões mais altas”.
A mensagem era clara: muda a terra, muda o clima. Wangari Maathai, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2004, ecoou milhões de mulheres quenianas quando alertou: “Se você destruir a floresta, o rio deixará de fluir, as chuvas se tornarão irregulares, as colheitas falharão e você morrerá de fome e inanição”. A partir da década de 1970, ela fez parte de um enorme movimento de mulheres que nutriu e protegeu milhões de árvores.

A convicção de Millán de que a mudança no uso da terra era um fator-chave que afetava o ciclo hidrológico e o clima da Terra foi fortalecida em 1991, quando ele e nove outros cientistas foram solicitados pela Comissão Europeia a determinar por que o clima em Valência e em toda a região do Mediterrâneo estava mudando rapidamente, com um declínio nas chuvas de verão, causando seca e desertificação, além do aumento de tempestades superintensas, súbitas e ferozes.
Usando extensos dados climáticos, Millán teve certeza de que as secas e os dilúvios estavam ligados entre si, apelidando-os de “os gêmeos terríveis”. Ele e sua equipe descobriram que as nuvens de chuva que vinham do Mediterrâneo historicamente não continham mais umidade suficiente para fazer chuva. As nuvens tinham um teor de água de apenas 14 gramas por metro cúbico de ar, mas precisavam de 21 g/m3 para precipitar.
A equipe de pesquisa também determinou o motivo da perda de umidade: no ado, à medida que as nuvens chegavam às costas do Mediterrâneo, elas atravessavam grandes pântanos vegetados, captando gramas adicionais de umidade, bem como núcleos de condensação de nuvens. Essas nuvens carregadas de umidade flutuavam então sobre o grande fazedor de chuva: as florestas de carvalho da Espanha. Essas florestas faziam mais do que enviar os gramas necessários de umidade e núcleos de condensação de nuvens; elas também resfriavam o ar, um o vital para fazer chover. Quando as nuvens que fluíam para o oeste chegavam a uma cordilheira como a Sierra Nevada, na Espanha, elas subiam ainda mais, esfriavam e, ao voltarem para o leste em direção ao Mar Mediterrâneo, lançavam chuva.
Ao longo do século 20, no entanto, houve um intenso desenvolvimento da região do Mediterrâneo. Os pântanos costeiros foram pavimentados para dar lugar a estradas, casas, hotéis, parques aquáticos, megainstalações de petróleo e gás e muito mais. As florestas de carvalho foram cortadas para extração de madeira e produção agrícola. Os ventos que sopravam em terra, em vez de esfriar, captavam o calor do concreto e dos solos compactados. E para cada grau Celsius de aquecimento que essas nuvens experimentavam, eram capazes de conter 7% mais vapor de água sem fazer chover. Quando essas nuvens atingiam as montanhas do interior, elas se erguiam e voltavam, mas ainda não liberavam sua precipitação. Dia após dia, as nuvens se acumulavam umas sobre as outras, contribuindo para tornar o Mar Mediterrâneo um dos mais quentes do mundo. Essas formações de nuvens podiam atingir 4 quilômetros de altura.
Então, quando os ventos frios de outono desciam do norte da Europa, essa imensa formação de nuvens carregadas de umidade sobre o Mar Mediterrâneo e o leste da Espanha desencadeava uma supertempestade, despejando um dilúvio em uma paisagem despojada de suas florestas e pântanos.
Um ano de chuva podia cair em um dia e, sem nenhuma esponja vegetativa para absorvê-la, as águas subiam e se enfureciam. Esses dilúvios caíam no pavimento e em solos duros, que haviam ado por anos de agricultura industrial intensiva. Solos saudáveis são capazes de absorver muita umidade. Em vez disso, o solo espanhol se transformava em lama, tornando as águas da enchente ainda mais destrutivas.
Um ciclo hidrológico vicioso foi criado e intensificado, com o desmatamento alimentando mais aquecimento regional e os “gêmeos terríveis” da seca e do dilúvio. Segundo Millán, esse golpe duplo estressou e degradou as florestas remanescentes, impactando ainda mais o ciclo da água. Adicione as emissões globais de gases de efeito estufa à mistura, e o quebra-cabeça que nubla as causas das crescentes inundações em Valência e Porto Alegre fica mais nítido.
Millán enfatizava que todos os elementos do mundo natural interagem e dependem uns dos outros. “Água gera água; o solo é o útero, a vegetação é a parteira”, dizia ele. Água, solo e vegetação — esses eram os pilares da vida. Dentro dessa visão de mundo biogeológica, mudanças profundas no uso da terra e nos sistemas de água doce podem ser vistas em conjunto com o aumento das emissões e as mudanças climáticas globais para preencher a impressão digital de eventos climáticos extremos.
Na verdade, no curto prazo, o uso da terra e a mudança da água foram muito mais dramáticos em seus efeitos do que o aumento das emissões, argumentou ele certa vez. Um caso no coração da teoria de Millán: a inundação de Valência em 2024.

Reconhecimento, depois resistência
O estudo de Millán foi inicialmente bem recebido. O autor foi convidado pelo Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para contribuir com seu Terceiro Relatório de Avaliação em 2002. Mas essa também foi uma época em que os cientistas do clima — que construíram modelos baseados em projeções de aumento das emissões globais de carbono e aumento das temperaturas — estavam se tornando dominantes.
Millán descobriu que os modeladores não estavam interessados em sua análise de fatores de interação e “questionavam todos os resultados que apresentávamos”. Ele se viu envolvido em intermináveis discussões perdidas e acabou deixando o IPCC.
Os políticos, ao que parecia, também preferiam a análise direta dos modeladores à contabilidade complexa de Millán. Com países em todo o mundo tentando melhorar os padrões de vida por meio da rápida expansão da agricultura industrial, mineração e grandes projetos de infraestrutura, as pessoas muitas vezes ficavam furiosas quando ouviam que o desmatamento e o desenvolvimento estavam prejudicando seriamente o clima e desestabilizando o ciclo hidrológico, talvez de forma permanente.
A visão dos modeladores, de que o principal culpado pelas mudanças climáticas era o aumento nas emissões globais de carbono, tornou-se dominante. Por um tempo, o foco mudou quase exclusivamente para o controle de emissões. Ainda hoje, quando a cobertura florestal é mencionada nos relatórios, como muitas vezes é na Mongabay e em outros meios de comunicação, a ênfase é colocada nos benefícios do armazenamento de carbono florestal ou da biodiversidade; e muito mais raramente no dano que o desmatamento causa ao ciclo hidrológico.

‘Um sistema requintadamente afinado, impulsionado pela vida’
Em 2009, a equipe internacional de cientistas de Johan Rockström propôs a estrutura de fronteira planetária — naquele momento apenas uma hipótese, agora uma teoria respeitada — que postula nove sistemas terrestres críticos para manter o “espaço operacional seguro para a humanidade” do planeta, sustentando a vida como a conhecemos. Cientistas hoje afirmam que as atividades humanas desestabilizaram perigosamente seis desses sistemas, incluindo mudanças no sistema terrestre (por meio, por exemplo, do desmatamento), mudanças na água doce (interrupção do ciclo hidrológico), mudanças climáticas e perda de integridade da biosfera. Essa estrutura engloba e expande muitas das ideias de Millán.
Hoje, os apoiadores de Millán aumentaram em número, e defendem a integração de uma abordagem que considere os sistemas da Terra com as soluções climáticas. Em um artigo publicado na Mongabay em 2024, por exemplo, a autora Judith D. Schwartz argumentou que os projetos de energia solar, instalados para reduzir as emissões de carbono, não deviam ser localizados em florestas naturais. Quando fazemos isso, ela explica, ignoramos que “a Terra desenvolveu um sistema requintadamente afinado para regular a temperatura e a umidade, o qual é impulsionado pela vida que habita este espaço, a flora, a fauna e os fungos, e as interações entre eles”.
Ela continua: “Isso não significa que as concentrações de CO2 sejam irrelevantes. Em vez disso, o carbono na atmosfera pode ser visto como uma alavanca, parte de um sistema geral de regulação climática”. A energia solar e outras energias renováveis podem desempenhar um papel no combate à crise, acrescenta ela, mas é necessária uma abordagem de sistemas que equilibre todos os insumos. É por isso que as instalações solares devem estar localizadas “em locais industriais abandonados, acima de estacionamentos e em telhados de armazéns”.
Klaas van Egmond, professor de Geociências da Universidade de Utrecht, na Holanda, disse à Mongabay que Millán estava “absolutamente certo em apontar a necessidade de olhar para o processo de maneira integral”. Van Egmond acrescenta que há muito se preocupa com o fato de a ciência ter se tornado muito focada em causas únicas, com soluções singulares.
“Esta é a causa raiz de todos os nossos problemas atuais”, comenta. “À medida que a ciência progrediu — e particularmente com o advento dos computadores — houve essa supervalorização e um excesso de confiança de que podemos ‘controlar o mundo por meios científico-tecnológicos’. No entanto, as últimas décadas mostraram que esse não será o caso”.

Os ‘gêmeos terríveis‘ no Brasil
No Brasil, alguns cientistas simpatizam com as visões holísticas de Millán, destacando a urgência existencial da conservação florestal em toda a paisagem — ideias malvistas entre os formuladores de políticas que desejam promover o crescimento econômico.
Um desses cientistas, hoje aposentado, é Antonio Donato Nobre, que trabalhou no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ele argumentou que há “uma profunda conexão entre o desmatamento na Amazônia e a intensificação de eventos climáticos extremos no Brasil, como as inundações catastróficas no Rio Grande do Sul e as secas prolongadas no Pantanal e em outros lugares”.
Como Millán, ele vê secas e dilúvios como “gêmeos terríveis”, criados neste caso pelo desmatamento da Amazônia e pelo aumento das temperaturas globais.
Nobre destaca o papel da floresta tropical não apenas na garantia do clima tradicionalmente benigno do Brasil, mas na regulação do clima da Terra. A floresta tropical, explica, atua como um poderoso “ar condicionado” natural através do processo de evapotranspiração e está associada a uma bomba biótica que impulsiona ventos úmidos para o interior. As árvores, particularmente em ecossistemas florestais densos, não apenas resfriam o ar na superfície da Terra mas também liberam umidade, que sobe para a atmosfera, formando nuvens que refletem o calor e provocam chuvas.
Esse pensamento está de acordo com a teoria da bomba biótica proposta pela primeira vez em 2007 pelos físicos russos Victor Gorshkov e Anastassia Makarieva. A bomba biótica “é um mecanismo no qual as florestas naturais criam e controlam os ventos que sopram do oceano para terra, trazendo umidade para toda a vida terrestre”, explicaram Gorshkov e Makarieva à Mongabay em 2012. Quando proposta, sua teoria virou de cabeça para baixo o pensamento tradicional de livros didáticos sobre o clima, propondo que não é a circulação atmosférica que impulsiona o ciclo hidrológico; em vez disso, são as florestas do mundo e o ciclo hidrológico que impulsionam a circulação atmosférica.
Mais do que se a teoria da bomba biótica está certa ou não, o que está claro para os cientistas hoje é que as florestas desempenham um papel muito mais complexo e abrangente na regulação do clima do que simplesmente serem sequestradoras de CO2.
Durante séculos, uma floresta amazônica dinâmica e saudável assegurou um sistema climático estável e produtivo, especialmente em regiões dependentes do que os cientistas apelidaram de “rios voadores” da Amazônia — fluxos maciços de vapor d ‘água formados sobre o Oceano Atlântico por ventos alísios dominantes que sopram pela Amazônia, captando mais umidade da floresta, até que sejam finalmente redirecionados para o sudeste pelos Andes. Essa curva para o sudeste traz chuvas regulares para as terras agrícolas do centro e sul do Brasil, Paraguai, Uruguai e norte da Argentina.
Essas nações se beneficiaram desse padrão confiável de precipitação sobre o que Nobre chama de “quadrilátero da sorte”, uma área agrícola responsável, além de tudo, por 70% do PIB da América do Sul. Ele contrasta essa sorte com paisagens desérticas encontradas em latitudes semelhantes do outro lado dos Andes e em outros continentes, como a Austrália ou a Namíbia, que carecem de uma floresta amazônica contra o vento.
Agora, Nobre teme que a destruição contínua da Amazônia esteja desestabilizando esse sistema outrora robusto, levando à formação de uma “bolha de ar quente” semelhante ao acúmulo de nuvens encharcadas de umidade descrito por Millán sobre Valência. Essa bolha, adverte Nobre, prenderá o calor, bloqueará os sistemas de chuva e exacerbará as secas e inundações, ao mesmo tempo em que empurrará os “rios voadores” para caminhos atípicos, intensificando eventos climáticos extremos.
Nos últimos anos, estudos mostraram que as chuvas da Amazônia, que alimentaram o sul do Brasil e as nações ao sul por gerações, estão diminuindo devido à perda intensiva de floresta tropical, juntamente com o aumento das temperaturas globais.

Catástrofe amanhã?
As inundações de 2024 em Porto Alegre e Valência recuaram. No Rio Grande do Sul, crescem as preocupações com os indícios de uma nova ameaça: a seca, a outra gêmea terrível.
Em Valência, o esforço de recuperação continua; não menos importante, entre as exigências assustadoras, está a necessidade de encontrar um local de descanso final para os 100 mil carros destruídos durante as chuvas. As pessoas temem a chegada de um verão quente, com temperaturas chegando a 40° C e as chuvas regulares de verão, agora uma memória desbotada. As pessoas também temem uma próxima inundação.
O ano de 2024 foi o primeiro na história em que as temperaturas globais médias excederam os níveis pré-industriais em 1,5°C — o limite superior relativamente seguro estabelecido pelo Acordo de Paris. Temperaturas elevadas, bolhas de calor persistentes, supertempestades, secas e incêndios atingiram o globo. Os modelos até agora não conseguiram explicar totalmente todo o calor de 2024.
Alguns sugerem que a resposta está no consumo implacável da civilização e no crescimento da população, que desencadearam interações complexas entre os sistemas que garantem o bom funcionamento da Terra. Inclui-se aí não apenas o aumento das emissões, mas também a queda das florestas, biomas degradados, declínio da biodiversidade, mares superaquecidos e um ciclo hidrológico energizado e instável.
O planeta até poderia viver com o “novo normal”. A questão é: os humanos podem? A vida como a conhecemos pode lidar com isso?
Se governos e corporações não oferecerem grandes correções de curso para lidar com mudanças desastrosas nos sistemsa de terra e água e nas emissões de carbono, os cientistas alertam que o mundo pode continuar oscilando entre inundações extremas e secas extremas, com cada desastre deixando a paisagem e as pessoas mais vulneráveis, mais pobres, exaustas, um pouco menos resilientes, um pouco mais próximas de um conflito social, talvez furiosas com bodes expiatórios sustentados por governos autoritários.

Um futuro melhor
Há caminhos a seguir, embora o espaço para a recuperação diminua a cada ano que a crise continua sem controle.
Ao buscar esperança, Millán voltou o olhar para os canais de irrigação que ele e seu pai costumavam pular durante as caminhadas regulares em direção à Serra Nevada. Esses canais, chamados acéquias, foram construídos pelos mouros entre os séculos 8 e 9, um dos muitos legados árabes deixados na Espanha. “As acéquias eram redes de armazenamento naturais e artificiais criadas em terras secas para que o pouco escoamento de água que havia pudesse ser capturado para beber ou para outros fins”, explicou Millán. Ele as via como uma das muitas práticas ambientais tradicionais com as quais o mundo moderno poderia aprender. Tais práticas são universais, com amunas no Chile e eris na Índia servindo a propósitos semelhantes, para citar apenas mais dois exemplos.
Millán ajudou a inspirar um movimento internacional baseado na regeneração da terra e na proteção das florestas. “Embora as previsões de Millán estejam agora se tornando realidade no clima extremo que estamos vendo no Mediterrâneo, não é tarde demais para parar o ciclo vicioso da degradação da natureza e do desastre climático”, disse Willem Ferwerda, fundador da iniciativa Commonland, à Mongabay. “A recuperação integrada da terra pode restaurar a função ecológica de paisagens degradadas, tornando a agricultura mais regenerativa, renovando florestas e zonas úmidas para reconstruir os ciclos naturais da água e estabilizar os climas regionais. No entanto, resolver o problema levará tempo. Este é um compromisso de longo prazo.”
A Commonland está trabalhando na Espanha para curar paisagens devastadas porque, como explica Ferwerda, “você não pode consertar a crise climática sem restaurar a terra. É como tentar reconstruir uma casa sobre uma fundação em ruínas. É por isso que a Commonland se dedica a apoiar as pessoas e organizações locais a trabalharem juntas”. Ele continua: “Ao restaurar a terra, podemos não apenas trazer de volta as chuvas de verão vitais e vivificantes na bacia do Mediterrâneo, mas também recuperar um senso de esperança e conexão para as comunidades que vivem lá”.
Nobre também encontra esperança no poder regenerativo da natureza. Ele abraça a “tecnologia milagrosa” das sementes, que encapsulam milhões de anos de inteligência evolutiva, permitindo que os ecossistemas se auto-reparem, mas apenas se tiverem chance.
O que precisa ser mudado acima de tudo é a maneira como vemos o mundo natural, particularmente a água. O escritor e poeta Rob Lewis esteve regularmente em contato com Millán antes deste morrer em janeiro de 2024 em Valência, a cidade que nove meses depois enfrentaria a catastrófica inundação. Lewis resumiu os pensamentos de Millán sobre a água:
“Os seres humanos são 60% água, aves [aproximadamente] 75%, peixes de 70% a 84%. Um gato típico tem 67%, enquanto [as partes em crescimento ativo das árvores, de] 80% a 90%. A quantidade de água que uma paisagem pode conter é, portanto, proporcional à quantidade de vida na paisagem e no solo. Quanto mais vida em uma paisagem, mais água ela pode ‘extrair’ dos fluxos oceânicos. É um círculo de auto-amplificação: água, através da vida, gerando mais água, gerando ainda mais vida, coletando ainda mais água, e assim por diante. O resultado seria o aumento do resfriamento climático e a moderação dos ciclos naturais.”
Mas o inverso é verdadeiro: corte as florestas e drene as áreas alagadas, e você seca a terra até que ela fique sem vida e perca sua capacidade de moderar o clima. É a trágica história da civilização e do nosso tempo.
Imagem do banner: Mais de 200 pessoas morreram em Valência por causa da enchente de 2024. O exército se juntou aos esforços de resgate na pior enchente já vivida na Espanha, que deixou vítimas na região devastada implorando por ajuda. Foto cedida por inkl.