Grupos criminosos estão contrabandeando ouro ilegal da Amazônia brasileira para a Venezuela, onde o metal é lavado e exportado para o exterior.
A nova estratégia é uma resposta às novas regras implementadas pelo governo Lula para dificultar o comércio ilegal de ouro.
A Mongabay acompanhou os os de Adriano Aguiar de Castro, que, segundo as autoridades, saltou de um esquema de lavagem de ouro para outro até se envolver com o contrabando de ouro para a Venezuela.
A necessidade de cruzar fronteiras aproxima os comerciantes de ouro do crime organizado e impõe novos desafios às autoridades.
Em 2023, a Polícia Federal notou uma movimentação incomum no pequeno aeroporto de Santarém, no estado do Pará: venezuelanos aparentemente humildes comprando agens caras de última hora e sempre pagando por bagagem extra. Em outubro, os agentes decidiram agir e prenderam um venezuelano tentando embarcar com 21 quilos de ouro escondidos em garrafas térmicas.
Dois meses depois, outra situação atípica chamou a atenção das autoridades: um homem carregando 47 kg de ouro sofreu uma tentativa de assalto em Manaus. Seu plano, frustrado pelo ataque, era enviar a carga em um jato particular.
Depois que um juiz autorizou a quebrar dos sigilos fiscal e telefônico dos suspeitos, os agentes federais descobriram que esses dois episódios estavam conectados e faziam parte de um esquema muito maior para enviar ouro ilegal da Amazônia brasileira para a Venezuela e, possivelmente, para a Guiana.
Isso era uma novidade para os investigadores e um sinal de que os comerciantes ilegais de ouro vinham se sofisticando à medida em que as autoridades brasileiras fechavam o cerco. Depois de quatro anos sob a istração do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-22), cujas políticas e retórica impulsionaram o garimpo ilegal, Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao poder atacando a ilegalidade em duas frentes. Por um lado, os agentes ambientais retomaram as operações em áreas dominadas pelo garimpo. De outro, novas medidas istrativas dificultaram o comércio de ouro ilegal.
“Notamos muito claramente que houve uma reestruturação do setor”, disse Raoni Rajão, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), à Mongabay. “O que as nossas fontes têm trazido é que aumentou de forma significativa a quantidade de ouro traficado através das fronteiras”.

A organização criminosa descoberta pela Polícia Federal em 2023 na chamada investigação Flygold era dividida em quatro núcleos: fornecedores, transporte, receptação e lavagem de dinheiro. Segundo os autos do processo, o metal era transportado principalmente por venezuelanos, que tinham mais facilidade em cruzar a fronteira. O ouro era transportado em balsas, barcos, aviões, veículos e até mesmo a pé, em uma rota iniciada em Itaituba que podia ar por Santarém, Manaus e Boa Vista antes de chegar à Venezuela. Lá, um dos possíveis compradores era uma empresa chamada Alibaba Goldcenter, concluíram os investigadores.
Composto por venezuelanos e brasileiros e com bases operacionais em Itaituba, no Pará, e Boa Vista, em Roraima, o grupo é suspeito de ter contrabandeado pelo menos 1 tonelada de ouro ilegal de fevereiro de 2023 a março de 2024. A movimentação teve seu auge quando os Estados Unidos suspenderam as barreiras comerciais ao ouro venezuelano, entre outubro de 2023 e janeiro de 2024, tornando o país vizinho uma atraente plataforma de exportação.
À medida que as investigações avançavam, um nome muito familiar surgiu. Adriano Aguiar de Castro é um homem cheio de truques, como revelado em diversas investigações policiais. Operando há anos nos garimpos ilegais da Amazônia brasileira, ele era mestre na lavagem de ouro e conhecia bem os atalhos dos lamacentos garimpos escondidos na floresta até as refinarias na Europa e na Ásia. Com uma simples adulteração de documentos, o metal ilegal entrava no mercado legal pela porta da frente. À medida que as regras do jogo mudaram, no entanto, ele rapidamente se adaptou e se tornou um personagem chave no esquema de contrabando de ouro.
Segundo o processo, ele era suspeito de recolher o ouro ilegal de diferentes garimpeiros no Pará e entregá-lo à equipe de logística. “Adriano e suas empresas constituem mais uma peça do núcleo de fornecedores, cooptando ouro possivelmente extraído de maneira ilegal e enviando para ser esquentado em outros países”, afirmou o processo.
Além das grandes somas de dinheiro ando pelas contas bancárias de Castro, uma foto dele em frente a um pequeno avião na capital da Venezuela, Caracas, também reforçou seu papel chave na organização. Ao lado dele na foto está Aldo José Pinheiro, apontado pelas autoridades como o “líder e responsável pela rota de transporte de material”. A Mongabay tentou entrar em contato com o advogado de Pinheiro sem sucesso. A justiça brasileira expediu um mandado de prisão contra Castro, mas ele não foi encontrado em seu endereço nem se apresentou à polícia.
A defesa de Castro informou à Mongabay que não comentaria o caso.

O mestre das minas falsas
A primeira aparição de Castro em registros policiais data de 2019, quando a Polícia Federal apreendeu 110,9 kg de ouro escondidos sob os assentos de um avião no aeroporto de Goiânia. Em breve, as autoridades descobririam que essa era apenas uma pequena parte das 1,5 toneladas de ouro ilegal negociadas pela organização criminosa naquele ano, totalizando quase R$ 218 milhões.
Castro era o braço direito do líder do grupo, Bruno Cecchini, concluiu a Polícia Federal. “[Castro] é um dos principais articuladores das transações ilícitas relacionadas à exploração ilegal do minério e à lavagem de dinheiro decorrente de tal delito”, escreveram os policiais federais em um relatório da investigação conhecida como Céu Dourado.

Entre suas atribuições estava comandar a construção de uma mina falsa no município de Colniza, no Mato Grosso, com o objetivo de enganar as autoridades sobre a origem do ouro negociado pelo grupo. As instalações foram construídas em terrenos que tinham autorizações de mineração aprovadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM). O metal, no entanto, vinha de garimpos ilegais do norte do Mato Grosso e do sul do Pará. A prática, conhecida como lavagem de ouro, era generalizada na Amazônia naquela época.
Quando as autoridades visitaram o local em agosto de 2019, um funcionário disse que estava construindo “alojamentos, refeitório e instalação de maquinários para futuro funcionamento de uma ‘mineradora’”. Ele também confirmou que nenhuma atividade de mineração havia ocorrido na área nos últimos três meses, contradizendo notas fiscais que indicavam que a extração de ouro estava a todo vapor. Segundo os autos do processo, Castro contratou o construtor “para iniciar as obras de infraestrutura no local visando dar uma imagem de que no local já estava ocorrendo a extração de ouro”.
Em declaração à Mongabay, o advogado de Cecchini negou qualquer falsidade nas operações de suas minas. Leia a resposta completa aqui.
A justiça brasileira aceitou as acusações contra Castro em junho de 2022, e ele aguarda julgamento. Isso não o afastou dos negócios. Um ano depois, uma foto de um buraco no chão faria os policiais federais se lembrarem automaticamente de Castro e do caso da mina falsa.
O buraco tinha cerca de 1 metro de largura e 1,5 m de comprimento, pequeno demais para acomodar um adulto deitado. Mesmo assim, essa pequena cavidade localizada a mais de 2 km da rodovia Transamazônica, no estado do Pará, era a origem de 379,4 kg de ouro avaliados em 137,6 milhões de reais segundo a Fênix DTVM, empresa que declarou em suas notas fiscais ter comprado o metal dessa mina.
A área pertencia a um dos supostos fornecedores da Fênix, José Barbosa de Lima, que possuía 10 autorizações de mineração. Destas áreas, a Fênix declarou ter extraído um total de 988,2 kg de ouro no valor de 257,4 milhões de reais entre 2021 e 2022. Quando a Polícia Federal analisou imagens de satélite das terras de Lima, no entanto, não encontrou nenhum sinal de mineração.
A Fênix argumentou que as operações eram subterrâneas, enviando como prova uma foto de Castro ao lado do buraco — um empreendimento aparentemente caseiro que contrastava com o grande volume de ouro supostamente retirado dali, comparável à produção de empresas de mineração industrial.

A resposta da Fênix foi descrita como uma “inovação” pelos investigadores brasileiros, acostumados a diferentes estratégias de lavagem de ouro. Eles afirmaram que a escavação parecia recente e “sem qualquer contenção lateral e estrutura que permitisse uma pessoa descer em profundidades significativas para minerar”, acrescentando que a licença ambiental de Lima permitia apenas a mineração nas margens de rios (de aluvião) e não subterrânea. “Já está claro que nenhuma atividade de mineração relevante é possível nas condições refletidas nas fotografias apresentadas”, afirmaram.
A polícia concluiu que a Fênix comprava ouro de garimpos ilegais do município de Itaituba, conhecido como a capital do ouro ilegal da Amazônia e localizado na bacia do Rio Tapajós. A região tem um histórico de mineração ilegal em áreas protegidas como o território indígena Munduruku, cuja população apresenta níveis alarmantes de mercúrio — a substância usada por garimpeiros para separar o ouro do minério contamina a água e os peixes consumidos pelas comunidades tradicionais.
Em comunicado enviado à Mongabay, a Fênix afirmou que “suas atividades são pautadas na legalidade, transparência e em conformidade com os mais rigorosos padrões internacionais de Compliance”. Leia a resposta completa aqui.

Os generosos pagamentos feitos por Castro ao filho de Lima, Josivan, levaram a polícia a acreditar que ele estava pagando para usar seus processos minerários para lavar o ouro ilegal vendido à Fênix, indicando a “reformulação dos negócios de Castro no Pará” após o desmantelamento de seu antigo esquema no Mato Grosso. Em mensagem à Mongabay, o advogado de Lima disse que não comentaria a reportagem.
O ouro ilegal comercializado por ambas as organizações criminosas de Castro chegou ao mercado internacional. No caso da Céu Dourado, o metal foi vendido para a Itália. No caso da Fênix, o ouro acabou em uma refinaria indiana que abastece grandes empresas de tecnologia como Google e Amazon, como revelou a Repórter Brasil.
Enquanto isso, Castro se envolveu em uma terceira investigação, chamada Operação Sisaque. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), o grupo negociou cerca de 13 toneladas de ouro ilegal, avaliadas em mais de R$ 4 bilhões, entre 2020 e 2022, e o produto acabou em países como Itália, Suíça e Emirados Árabes Unidos. A Polícia Federal concluiu que o papel de Castro era comprar o metal de muitos pequenos fornecedores e revendê-lo à empresa exportadora.
Virando o jogo
Os garimpos respondem por cerca de um terço da produção de ouro do Brasil e estão sujeitos a regras ambientais mais brandas do que as grandes empresas de mineração. Essa legislação mais permissiva foi inicialmente concebida para garimpeiros artesanais, que exploravam pequenas áreas com instrumentos primitivos.
Hoje, no entanto, os donos de garimpos istram grandes negócios que investem milhões de reais em retroescavadeiras e tratores, deixando para trás impactos ambientais devastadores. Embora possam operar dentro da legalidade, muitos não seguem as regras e abrem suas minas em áreas proibidas, como territórios indígenas.
Durante anos, o ouro ilegal encontrou o caminho para os mercados internacionais usando a mesma estratégia de Castro: a lavagem de ouro. O metal era vendido principalmente para empresas financeiras chamadas DTVMs, as únicas instituições autorizadas pelo Banco Central a fazer a primeira aquisição do ouro de garimpos.

As DTVMs costumavam ter pequenos escritórios próximos aos locais de produção de ouro, especialmente em Itaituba. Grande parte do metal que chegava aos seus balcões era ilegal, mas era muito simples resolver isso: ao preencher as notas fiscais, o funcionário da DTVM indicava uma mina legal como origem do produto. “Só não lavava ouro quem não queria. Era muito fácil”, disse Rodrigo Magalhães de Oliveira, analista de direito do Ministério Público Federal do Pará, à Mongabay.
Enquanto a lavagem de ouro corria solta nos escritórios refrigerados das DTVMs, as autoridades públicas ainda estavam focadas em destruir máquinas em garimpos nas profundezas da floresta. “Ainda se tinha uma ideia de que se combatia garimpo ilegal indo em campo e destruindo algumas dragas”, disse Rajão.
As coisas começaram a mudar em 2018, quando o MPF lançou sua primeira grande investigação contra uma DTVM que operava no Pará, acusada de lavar ouro da Terra Indígena Zo’é. Quatro pessoas foram condenadas em 2024. “Foi a primeira investigação em larga escala sobre a aquisição de ouro ilegal, quando o MPF começou a investigar a cadeia de fornecimento de forma mais estrutural”, disse Oliveira.
Em 2021, um relatório inovador da UFMG mostrou que este estava longe de ser um caso isolado, e concluiu que quase um terço do ouro produzido no Brasil era ilegal. Para chegar a esse número, a equipe de Rajão analisou imagens de satélite das áreas que as DTVMs declaravam como a origem do metal. Em muitos casos, eles não encontraram absolutamente nenhum sinal de atividade mineral nestes locais.
“Com isso, ao invés de apontar casos pontuais, agora o MPF podia dizer que toda a Bacia do Tapajós, majoritariamente, comprou ouro ilegal pelas DTVMs”, disse Rajão. Novas investigações se seguiram, mirando mais empresas, como a Fênix, mas também órgãos públicos que não conseguiam manter a cadeia do ouro sob controle, como a Agência Nacional de Mineração e o Banco Central.
“O MPF foi sistematicamente abrindo ações civis públicas e levando à justiça todos os principais atores da cadeia ilegal do ouro na Amazônia”, acrescentou o pesquisador da UFMG.

No entanto, os avanços nas investigações foram ofuscados pela istração do presidente Bolsonaro. Em vez de reduzir, as áreas de mineração quase dobraram durante seu governo, impulsionadas pelo desmonte da fiscalização ambiental e pela alta dos preços do ouro.
“Isso teve um efeito de profusão do garimpo em localidades onde o garimpo não era tradicionalmente visto”, disse Luiz Jardim Wanderley, geógrafo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), à Mongabay. “E o aumento no preço levou a um aumento do volume de exploração, já que com mais recursos, o garimpeiro pode comprar mais maquinário, mais retroescavadeiras”.
Onde está o ouro?
As coisas começaram a mudar em 2023, quando o presidente Lula chegou ao poder e retomou as operações na Amazônia. No entanto, o principal golpe contra o garimpo ilegal foi dificultar o comércio do ouro, não apenas sua produção.
Primeiro, a Receita Federal tornou obrigatória a nota fiscal eletrônica para a venda do ouro, facilitando o monitoramento da cadeia de fornecimento pelas autoridades — até então, tudo era registrado à mão. Em seguida, o Supremo Tribunal Federal pôs fim ao conceito de “boa-fé” que isentava as DTVMs de verificar a origem do metal. Pela antiga regra, se o vendedor dissesse que o ouro era legal, isso deveria ser prova suficiente para a DTVM comprá-lo.
“O ouro ilegal brasileiro era majoritariamente, senão completamente, lavado”, disse Oliveira. “Tanto que não havia diferença de preço entre o ouro legal e o ilegal no balcão da DTVM”.
As novas regras tiveram efeito imediato. As exportações de ouro do Brasil caíram 29% em 2023, segundo o Instituto Escolhas, que defende o desenvolvimento sustentável dos recursos naturais. De janeiro a julho de 2024, houve uma queda de 35% em comparação com o mesmo período do ano anterior.

No estado do Pará, a arrecadação do imposto pago pelas DTVMs sobre o ouro de garimpo caiu 51% de 2022 para 2023 e 47% de 2023 para 2024, conforme registrado pela Agência Nacional de Mineração. As DTVMs recuaram, fechando a maioria de seus escritórios nos centros produtores de ouro. Itaituba, que tinha 23 pontos de compra em 2021, agora tem apenas dois. “As DTVMs com escritórios locais foram fechando, porque a lavagem se tornou um negócio perigoso, o que não era até então”, disse Rajão.
No entanto, novos garimpos ilegais continuaram pipocando nas imagens de satélite, embora em um ritmo muito mais lento. Segundo o MapBiomas, uma plataforma da sociedade civil que rastreia mudanças no uso da terra, a área ocupada por garimpos caiu mais de 40% na Amazônia em 2023 em comparação com o ano anterior. Em 2024, caiu 35%. Ainda assim, 7.213,5 hectares de floresta foram destruídos por novas minas nos dois primeiros anos do governo Lula — mais da metade (4.205,5 hectares) foram registrados no Pará.
“Apesar de o ritmo de mineração ter diminuído, ele não caiu na mesma proporção que o ritmo do ouro declarado [nos impostos]”, disse Rajão. “Portanto, claramente tem ainda uma quantidade de ouro sendo produzido ilegalmente”.
A persistência da atividade também pôde ser observada em campo, onde os donos dos garimpos corriam para retomar as operações assim que os agentes ambientais viravam as costas. Garimpeiros também abriram novas frentes de exploração em unidades de conservação, segundo o Greenpeace. Em janeiro de 2025, a organização também identificou um novo aumento no número de dragas — estruturas flutuantes que revolvem o leito do rio em busca de ouro — no rio Madeira, no estado do Amazonas, apenas cinco meses após uma ofensiva federal que destruiu 459 dessas estruturas. Em fevereiro, a Polícia Federal encontraria uma mina de ouro subterrânea projetada para enganar imagens de satélite no município de Maués, também no Amazonas.
O ouro ilegal ainda estava sendo produzido na Amazônia, mas quase desapareceu dos registros públicos. “Este ouro está saindo por outro canto”, disse Oliveira, do MPF.
Investigações como a Flygold começam a esclarecer por quais rotas pelo menos parte desse ouro está sendo escoado. Com as novas regras implementadas no Brasil, concluíram os investigadores, “o esquentamento deste minério pode estar ocorrendo fora do país, em locais com legislação mais branda”.
Mensurar a dimensão deste contrabando, no entanto, não é tarefa simples. O ouro ilegal contrabandeado para a Venezuela deixa poucos rastros e nenhuma documentação. Em 2024, uma investigação transfronteiriça de veículos sul-americanos analisou os dados da Venezuela de 2013 a 2023 e descobriu que as exportações de ouro historicamente excederam a produção do metal, indicando que parte desse material poderia estar vindo de países vizinhos.
No entanto, os jornalistas responsáveis pela investigação disseram que os números do país “têm lacunas que impedem uma análise precisa”.
Até mesmo plataformas globais de dados da cadeia de suprimentos, como a Panjiva, têm dificuldade em rastrear essas remessas. O Center for Climate Crime Analysis, uma organização sem fins lucrativos que investiga emissores de gases de efeito estufa, analisou os dados da Panjiva a pedido da Mongabay, e encontrou apenas seis remessas de ouro venezuelano, todas depois de 2021. A maior delas, de 1.984 kg, foi feita pelo Banco Central da Venezuela em novembro de 2022 para “países não declarados”. As outras, totalizando 120,8 kg, foram enviadas para a Turquia, principalmente em 2023. A Mongabay entrou em contato com o Banco Central da Venezuela e a embaixada venezuelana no Brasil, perguntando sobre o caso de contrabando de ouro e os dados de comércio de ouro do país, mas nenhuma das instituições respondeu.
No entanto, segundo fontes ouvidas pela Mongabay, a organização criminosa Flygold não é um caso isolado. “Não podemos dar muitos detalhes, mas temos esta informação de que existe uma cadeia de [contrabando de ouro] através da Venezuela, mas também da Guiana e do Suriname”, disse Rajão, da UFMG, cuja equipe de pesquisa colabora com as autoridades brasileiras.

Em janeiro de 2025, a Polícia Federal mirou outro grupo na Amazônia suspeito de transportar cerca de 34 kg de ouro ilegal, avaliados em R$ 18 milhões, entre novembro de 2023 e fevereiro de 2024. A Mongabay apurou que o metal foi contrabandeado para a Venezuela e a Bolívia, segundo um agente da Polícia Federal que prefere não ser identificado.
Essa nova dinâmica significa uma inversão do fluxo de metal no continente. Por décadas, a facilidade de lavar ouro ilegal no Brasil tornou o país a “máquina de lavar” perfeita, onde o ouro era “legalizado” antes de ser exportado. Não por acaso, o Brasil historicamente exportou mais ouro do que produziu, indicando que parte do metal vinha de áreas não declaradas.
“O Brasil era um excelente entreposto do ouro ilegal de diferentes países vizinhos”, disse Rajão. “Hoje, estamos vendo um fluxo reverso: ouro ilegal do Brasil está cruzando a fronteira para a Venezuela porque agora é mais fácil lavar ouro na Venezuela e exportá-lo para países como Índia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos”.
Mais perto do crime organizado
A reorganização das rotas do crime impõe novos desafios às autoridades brasileiras. Primeiro, trazendo novos atores para a cena. “Antes, pouquíssimos atores concentravam praticamente todo o fluxo de ouro ilegal sendo lavado na Amazônia”, disse Rajão. “Você podia contá-los nos dedos. E o MPF e a Polícia Federal foram atrás deles, um por um”.
Agora, os grupos que contrabandeiam ouro pelas fronteiras precisam de um sistema logístico sofisticado, muitas vezes controlado pelo crime organizado. “O crime organizado não está lá tirando o ouro de dentro do território indígena, mas está fornecendo o mercúrio, levando o ouro para a Venezuela para ser lavado ou até trocado por armas e pasta base [uma forma bruta de cocaína]”, disse o pesquisador da UFMG à Mongabay.
Em Roraima, por exemplo, uma organização criminosa venezuelana uniu forças com a facção criminosa brasileira Primeiro Comando da Capital (PCC) e forçou imigrantes venezuelanos a trabalhar em garimpos ilegais. A interseção entre mineração ilegal de ouro e crime organizado na Amazônia também é observada no Peru, afirmou Livia Wagner, da Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional, uma organização da sociedade civil com sede em Genebra, na Suíça.
“De 2011 em diante, muitos grupos internacionais começaram a operar nos garimpos. Antes, eram apenas grupos locais”, disse ela. Segundo a pesquisadora, as organizações criminosas foram atraídas pela contínua alta dos preços do ouro e pela possibilidade de usar o metal para lavar dinheiro do tráfico de drogas. “As organizações estão vendo que há muito dinheiro na mineração e que as políticas públicas não estão avançando, então ainda há muito espaço para novos grupos entrarem”.
Essas novas rotas não significam que a ofensiva brasileira não esteja funcionando, afirmou Wanderley, professor da UFF. “Está funcionando e, ao mesmo tempo, o garimpo está procurando outras saídas”, disse ele.
Oliveira, do MPF, disse que o governo conseguiu diminuir o ritmo do avanço dos garimpos na Amazônia em meio a recordes consecutivos nos preços do ouro. “Ter uma queda na mineração em um contexto de alta dos preços do ouro não é trivial, então as medidas tiveram um impacto”, disse ele. “Mas as medidas são insuficientes e temos que intensificar o combate, tanto com fiscalizações em aeroportos quanto nos pontos de extração”.
Segundo especialistas, os países que compram ouro da Amazônia também deveriam melhorar suas práticas. “A Suíça já tem uma iniciativa chamada Better Gold, mas precisa avançar mais rápido. O Canadá, que é um dos maiores compradores de ouro do Brasil, não tem uma iniciativa tão explícita. E há países como Índia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e China que não demonstraram interesse em avançar”, disse Rajão. “Enquanto países e empresas comprarem ouro de mineração ilegal, os recursos continuarão fluindo para a Amazônia”.
Capital do ouro ilegal resiste a operações contra o garimpo na Amazônia
Imagem do banner: Ouro ilegal da Amazônia é vendido para a Europa, Ásia e América do Norte, abastecendo joalherias e empresas de tecnologia. Foto: Fernando Martinho/Mongabay.