A morte recente de um homem por ataque de onça no Pantanal chamou a atenção para os desafios da convivência entre humanos e o maior felino das Américas na região.
Pessoas não são consideradas presas pelas onças, mas o aumento de incêndios e a escassez de caça têm forçado o felino a se aproximar de sítios e fazendas, onde é comum que capture animais domésticos; confrontos com humanos, porém, podem acontecer caso se sintam ameaçadas.
Comunidades pantaneiras reclamam da falta de segurança a que estão expostas, argumentando que a proteção à onça por órgão ambientais deve incluir também o equilíbrio na convivência com a população humana.
Por volta das 8 horas da manhã, nos arredores da remota Serra do Amolar, no Mato Grosso do Sul, uma rotina que parecia corriqueira para o homem pantaneiro tomou um rumo inesperado. Era o ano de 2002, e Roberto Carlos Conceição Arruda, o Beto, então com 29 anos, saiu sozinho de casa para buscar água na nascente. Ao voltar, se deparou com uma onça-pintada pronta para atacar. Desesperado, correu em busca de abrigo, encontrando refúgio atrás de um tronco. A onça, no entanto, não o deixou em paz e, embora a madeira servisse como proteção parcial, Beto sofreu vários arranhões. A situação só teve outro desfecho graças à coragem de seu cachorro vira-lata, Elói, que avançou contra o animal. Ela capturou o cão e o levou para a margem do rio, deixando Beto para trás.
A coexistência entre humanos e onças no Pantanal remonta a pelo menos 3 mil anos, quando populações indígenas aram a ocupar o território. A região onde Beto vive e trabalha como piloteiro e guia turístico abriga uma imponente formação rochosa na fronteira do Brasil com a Bolívia, situada entre as cidades de Corumbá (MS) e Cáceres (MT), área que integra a Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar. O local tem relevância ecológica: é um santuário para grandes vertebrados, como a onça-pintada (Panthera onca), cuja presença é continuamente registrada, e um refúgio estratégico para a sobrevivência da espécie e a preservação do bioma.
“Não sinto mágoa do animal em relação ao acidente. Trabalho com turismo de base comunitária e fazemos avistamento das onças; defendo a sua preservação”, afirma Beto, pontuando que, desde 2022, o felino — que atinge os maiores tamanhos da espécie no Pantanal — tem sido visto com maior frequência pelos ribeirinhos, não apenas na natureza, mas também, em algumas ocasiões, em frente às suas moradias. “Não está dando mais para ter galinha, cachorro e outros animais domésticos, pois ela os come, já que não tem o que caçar. Jacaré e capivara estão escassos nesse pedaço, direto vemos as pegadas das onças perto das casas; tem muitas habitando ao redor da Serra do Amolar, precisamos manter distância delas.”

Longe dali, na região do Touro Morto, em Aquidauana (MS), um novo caso trágico se deu em abril de 2025, com a morte do caseiro Jorge Ávila, atacado por uma onça às margens do Rio Miranda. Diante da comoção provocada por esses eventos, pesquisadores alertam que ataques de onças a seres humanos são raros, uma vez que elas não consideram os bípedes como presas; contudo, isso não impede que tais episódios aconteçam se elas se sentirem ameaçadas, se estiverem em locais com alimentos deixados na natureza (propositalmente ou não) ou carcaças de animais ou se quando há fêmeas com filhotes na proximidade de pessoas.
Com a morte de Jorge ainda sendo comentada pelos pantaneiros, a recente aparição de onças na comunidade Barra do São Lourenço — vizinha de Beto — levou a artesã e coordenadora da Rede Pantaneira Leonida Aires (conhecida por todos como dona Eliane) a compartilhar nas redes sociais vídeos dos momentos de tensão vividos por parte das 21 famílias do local. “Acredito que seja mais de uma onça, com filhotes. Elas ficaram rondando tudo aqui de madrugada atrás de comida. Consegui expulsar uma na força do grito, de dentro de casa, para que não invadisse meu galinheiro durante a tarde”, relata dona Eliane. Nas imagens, os rastros dos felinos aparecem em diferentes pontos da comunidade, inclusive no alto da escada que leva à porta da residência de sua cunhada.
Entretanto, essa não é a primeira vez que um pedido de ajuda é feito para evitar ataques a moradores e a quem transita por essas bandas isoladas do bioma, como turistas, pesquisadores e fazendeiros. Segundo dona Eliane, desde 2020, com o aumento dos incêndios e a seca extrema que assolam o Pantanal, a presença da onça-pintada nas proximidades de áreas habitadas tem se intensificado na Serra do Amolar. Ela chegou a contabilizar mais de 60 cachorros mortos pelas onças, tanto na Barra do São Lourenço quanto no Aterro do Binega, uma continuação da comunidade. Somente ela e o marido perderam 21 cachorros para o felino; em uma das vezes, presenciou a rápida cena pela janela, sem poder interferir. Hoje prefere manter os animais, que sempre latem ao perceber qualquer sinal estranho, agindo como um alerta para os moradores, recolhidos em casa.
“É comum ver onça por aqui, de agem; vivemos no mesmo Pantanal que esse animal. Só que agora, ou elas estão ficando mais tempo perto de onde tem gente, ou parecem estar surgindo em maior quantidade”, questiona a artesã, ao lamentar os últimos dias sem dormir por conta do “pavor” das visitas que elas fazem, principalmente de madrugada. “A gente escuta o movimento delas no quintal e tem receio de sair de casa ao entardecer para conversar em volta da fogueira, uma tradição nossa que não podemos mais manter.”

Na Barra do São Lourenço e no Aterro do Binega, nunca houve nenhum caso de ataque a seres humanos. Dona Eliane, nascida e criada na comunidade, ouviu falar de uma história antiga nas redondezas, mas não sabe quem foram os envolvidos. Números publicados pelo Instituto Reprocon apontam que, entre 2010 e 2023, foram contabilizados 28 ataques no Brasil, sendo 5 provocados, 17 não provocados e 6 sem causa determinada.
Em 2022, foi realizada uma vaquinha virtual para arrecadar dinheiro e comprar cercas de proteção para as casas e a única escola da região, devido à segurança das crianças. Porém, a quantia arrecadada não foi suficiente para cobrir os custos dos materiais.
“Nós estamos revoltados, porque parece que a nossa vida não tem tanta importância quanto a da onça-pintada. É claro que ela e todos os animais precisam ser protegidos, mas existe um desequilíbrio por aqui: dão visibilidade apenas a ela, esquecendo que nesta região vivem pessoas e outros seres que merecem proteção e respeito”, desabafa a pantaneira, que, aos 58 anos, percebe o quanto tudo mudou desde sua infância, quando, segundo ela, havia mais harmonia entre os ciclos da natureza e a presença humana. “Hoje, tudo parece desorganizado; o ecossistema do Pantanal precisa ser acolhido por inteiro, estamos interligados, e se uma parte deixa de existir, isso afeta o modo de vida de todos nós. Não podemos excluir nada nem ninguém, todos têm o direito de existir com dignidade.”
A pescadora Leonora Aires de Sousa relatou que oito cachorros já foram capturados por onça na Barra do São Lourenço só este ano. Numa das vezes, ela chegou a presenciar o ataque e descreveu a onça como magra. Leonora diz que, antigamente, esses animais eram mais ariscos e não rondavam o território com a frequência atual. “Ela precisa, sim, ser preservada, só que longe de nós e não tão perto como está se tornando habitual. Temos medo, porque é um animal selvagem e perigoso.”
Leonora e seu irmão, Wanderley Souza, atuam juntos como isqueiros nos rios do Pantanal, em uma tarefa que se estende pela madrugada, com o corpo submerso na água, buscando atrativos (caranguejos, tuviras, caramujos etc.) lançados como iscas para atrair os peixes no turismo de pesca. Como a noite e o início da manhã são conhecidos por serem os horários da onça circular, eles temem a possibilidade de ficar cara a cara com o felino, que é ótimo nadador. Mas, para não comprometer a renda mensal, assumem o risco em jornadas diárias de até 10 horas dentro d’água.

Colaboração entre ciência e saberes tradicionais
Para Diego Viana, médico veterinário e doutorando em Ecologia e Conservação na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o desafio de conservar a onça-pintada no Pantanal não está unicamente em proteger a espécie, mas sobretudo em garantir que as pessoas que compartilham o território com ela se sintam seguras, ouvidas e valorizadas. “Só assim será possível prevenir tanto os ataques quanto as retaliações, promovendo uma coexistência baseada em justiça, conhecimento e corresponsabilidade.”
Diego frisa que a importância da valorização do conhecimento empírico e das experiências locais, aliada ao monitoramento científico, é imprescindível para promover a coexistência entre as populações humanas e a fauna silvestre, especialmente em regiões onde os encontros são frequentes e potencialmente conflituosos. Em relação às ações desenvolvidas na região, por ONGs e seus pesquisadores, é importante que sejam iniciativas permanentes e não apenas uma resposta emergencial após os casos ocorrerem.
O pesquisador explica que, entre as regiões com maior concentração da espécie, destacam-se o Pantanal Norte, onde se localiza a Estação Ecológica de Taiamã, no município de Cáceres (MT), que apresenta a mais alta densidade populacional de onças-pintadas registrada no mundo, com uma estimativa de 12,4 indivíduos por 100 km². No Pantanal Sul, regiões como a Serra do Amolar, o Abobral e áreas remotas como o Paiaguás também apresentam elevada ocorrência da espécie, funcionando como refúgios naturais e rotas de deslocamento.
“Após os megaincêndios no Pantanal, as onças-pintadas ampliaram sua área de ocupação em busca de alimento, devido à escassez de presas naturais, como queixadas e veados, que diminuíram após os incêndios de 2020. Essa mudança no comportamento pode ter levado as onças a ocupar zonas de borda e áreas próximas às comunidades humanas, onde encontram animais domésticos mais vulneráveis”, evidencia o pesquisador.

É sabido por ele que diversas comunidades ribeirinhas do Pantanal mantêm a percepção de que houve uma diminuição nas populações de presas naturais da onça-pintada, o que pode estar forçando os felinos a se aproximarem das casas em busca de alimento. Apesar de a ciência não ter confirmado um declínio generalizado nessas populações, Diego elucida que essa impressão reflete uma adaptação ecológica das onças à escassez de recursos, sem necessariamente indicar um crescimento populacional.
Em 2020, cerca de 746 onças-pintadas — aproximadamente 45% da população estimada no bioma — foram diretamente impactadas pelos incêndios no Pantanal, conforme . Os danos incluíram deslocamentos, ferimentos, mortes e a perda de grande parte das áreas de vida utilizadas pela espécie. “A caça retaliatória, motivada por ataques a animais domésticos, segue sendo um obstáculo, afetando negativamente as populações e a imagem das onças”, aponta Diego.
Diante das ameaças, iniciativas de educação ambiental, monitoramento por câmeras e colares GPS e práticas agropecuárias mais sustentáveis vêm sendo implementadas. “Com apoio de organizações como o WWF-Brasil, essas ações buscam promover a convivência entre pessoas e onças, conciliando conservação da biodiversidade e bem-estar humano por meio de esforços colaborativos entre ciência e saber tradicional.”
As recomendações do pesquisador para reduzir o risco de ataques de onças-pintadas são adotar medidas preventivas, como evitar que crianças circulem sozinhas em espaços próximos a matas no início da manhã e ao entardecer. O deslocamento deve ser feito em grupo e com ruídos, como conversas, para afastar as onças. Além disso, cercas elétricas, alambrados e boa iluminação ao redor das casas são atitudes eficazes, assim como manter animais domésticos em abrigos fechados à noite. O uso de repelentes luminosos e o descarte adequado de lixo e carcaças também são basilares, já que resíduos orgânicos podem atrair esses animais.
“A onça-pintada tem forte importância econômica no turismo de observação, gerando emprego e renda por meio de pousadas e guias. Contudo, é essencial que os benefícios dessa atividade sejam compartilhados com as comunidades tradicionais, que muitas vezes enfrentam perdas de animais domésticos e riscos à segurança”, adverte Diego.
Gediendson Ribeiro de Araújo, médico-veterinário e pesquisador do Instituto Reprocon, participou da captura da suposta onça-pintada que matou Jorge, que continua em observação no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras), em Campo Grande (MS). Ele contextualiza que esse episódio lamentável nos ensina algo importante: embora o ser humano não faça parte da dieta da onça, é indispensável mantermos uma relação de respeito com esses animais, na qual sejamos percebidos como predadores e não como presas.
“A ceva [oferta de alimento para atrair animais silvestres] na região é um sério problema, que potencializa acidentes como esse. Não estou dizendo que o senhor Jorge fazia ceva, mas o simples fato de outras pessoas realizarem essa prática em prol do turismo nas proximidades fez com que o animal perdesse o medo dos humanos, resultando na tragédia.”
No Pantanal, a população de onças-pintadas, classificada como “vulnerável” pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), é estimada em cerca de 4 mil indivíduos.

Falta de apoio
Dona Eliane reforça que, no que se refere à aproximação da onça-pintada à comunidade, os moradores não recebem e técnico prolongado nem soluções concretas por parte do poder público ou das organizações atuantes no bioma. De acordo com a artesã, o Instituto Homem Pantaneiro (IHP) instalou algumas câmeras para o monitoramento dos felinos na comunidade; entretanto, há anos não fornece devolutivas.
Contatada, a assessoria do IHP respondeu que, em 2022, após relatos de moradores da Barra do São Lourenço a respeito da chegada de onças-pintadas durante o período de cheia, o instituto, junto ao ICMBio, Embrapa Pantanal e a ONG Ecoa, realizou ações para reduzir conflitos, como a instalação de repelentes luminosos e armadilhas fotográficas. Também foi prestado atendimento veterinário aos cães da comunidade e, em 2024, foram promovidas rodas de conversa e atividades de educação ambiental com estudantes, professores e mulheres.
A assessoria ainda mencionou que o IHP participa de um grupo interinstitucional que elabora protocolos para aprimorar a convivência com onças-pintadas, com reuniões realizadas na última semana de abril para orientar equipes em lugares remotos da Serra do Amolar, e outra marcada para o final de maio. Ressaltou, por fim, a contribuição de pesquisadores do instituto em um estudo científico global que propõe caminhos para a coexistência entre humanos e onças.
Segurança para as pessoas, proteção para as onças
“Como forma de atenuar o risco de retaliação e cuidar para que não ocorram novos incidentes com as onças-pintadas, é fundamental que exista uma resposta rápida e sensível por parte do poder público e das instituições de conservação”, analisa Diego Viana. Ele sugere que o fortalecimento da fiscalização, por sua vez, precisa ser acompanhado de presença territorial e articulação com lideranças locais, de modo a ampliar a confiança mútua e romper com o isolamento institucional, que frequentemente favorece a impunidade.
Na esteira governamental, Rogério Cunha de Paula, coordenador do ICMBio/Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), informa que o órgão não possui medidas específicas direcionadas para o Pantanal. Todavia, ele opera em conjunto com as organizações e instituições de pesquisa presentes no bioma. “Essa convivência sempre existiu e continuará; é necessário respeitar os critérios para uma boa interação. Tentar atrair uma onça-pintada para perto, querendo que ela seja um ‘pet’, é perder o respeito por um ser selvagem.”
Rogério conclui que não se trata de educação ambiental, pois o povo pantaneiro sabe como agir em seu território, e sim de criar uma legislação eficaz para punir atividades como as cevas e caças criminosas. “Não precisamos dizer às pessoas que moram no Pantanal sobre os perigos de conviver com as onças ou os cuidados em rios com piranhas, eles já sabem; é fundamental alertar aqueles que utilizam o Pantanal de maneira inadequada. Quem faz isso não é o ICMBio sozinho; ao contrário, é em conjunto com diversas instituições e o governo do estado.”
Questionado acerca da necessidade de conservar a espécie e, ao mesmo tempo, garantir uma convivência segura entre os felinos e os pantaneiros, o governo de Mato Grosso do Sul declarou que “trata-se de um ataque atípico. Não há registros recentes”. No que diz respeito às políticas públicas em vigor no estado, com o objetivo de orientar a população quanto a animais silvestres, a Polícia Militar Ambiental realiza uma série de ações, campanhas e até expedições para conscientizar ribeirinhos, pantaneiros e turistas sobre o convívio e as práticas que são consideradas ilegais.
A assessoria do governo estadual comunicou que uma das grandes preocupações das autoridades é evitar o ato criminoso e ilegal de “cevar animal”, considerado maus-tratos, como previsto na Lei de Proteção à Fauna do estado. Especificamente em relação às ações voltadas à ampliação da segurança e da qualidade de vida dos moradores do Pantanal, foi reado que não há registros que indiquem o aumento nas interações entre humanos e felinos.
Reintrodução inédita de onça-pintada revela obstáculos à conservação da espécie no Brasil
Imagem do banner: Onça-pintada no Rio Piquiri, Pantanal sul-matogrossense. Foto: Charles J. Sharp, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons