Estudo recente revela o risco de que a água dos rios possa ser absorvida pelo subsolo devido à intensa extração de água subterrânea no Brasil — o que pode resultar em perdas significativas no fluxo fluvial.
Pesquisadores identificaram uma correlação entre o uso de águas subterrâneas e a redução do fluxo fluvial, especialmente em áreas de terra firme.
A exploração excessiva desses recursos pode impactar gravemente a agricultura, a geração de energia e os ecossistemas no país, e poços ilegais não registrados provavelmente agravam o problema.
Especialistas enfatizam a importância de melhorar a gestão dos recursos hídricos, defendendo um monitoramento hidrogeológico mais eficaz e estudos regionais mais detalhados para compreender melhor os riscos enfrentados pelas fontes de água no Brasil.
Em muitas regiões do Brasil, os rios podem estar perdendo água para o subsolo, em vez de recebê-la. Um estudo recente revelou que os níveis de água subterrânea em diversas áreas estão mais baixos do que os dos rios próximos, o que faz com que a água flua dos rios para o subsolo. Essa mudança, possivelmente impulsionada em parte pela extração intensiva de água subterrânea, pode reduzir o fluxo dos rios e trazer sérias consequências para o abastecimento de água, a agricultura, a geração de energia e os ecossistemas do país.
Embora os autores do estudo ressaltem que ainda não se pode afirmar de forma conclusiva que o uso de poços seja a causa direta da redução do nível dos rios, eles encontraram uma forte correlação entre o uso intensivo de água subterrânea e maiores perdas potenciais de vazão, especialmente em regiões secas, onde a extração é mais intensa.
“A Califórnia, a Índia e o Irã já mostraram como o uso intensivo de águas subterrâneas pode reduzir o fluxo dos rios — e os sinais sugerem que o Brasil não é uma exceção”, disse à Mongabay o coautor do estudo Paulo Tarso Sanches de Oliveiras, professor de hidrologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e da Universidade de São Paulo (USP). “Onde há fumaça, há fogo — e tudo indica que o uso excessivo de água subterrânea em algumas regiões do Brasil tem um papel no declínio dos níveis dos rios.”
O estudo analisou dados de 17.972 poços e constatou que 55,4% deles apresentam níveis de água inferiores aos dos rios próximos. Na Bacia do Rio São Francisco, 61% dos rios são potencialmente vulneráveis à perda de água para os aquíferos (camadas subterrâneas de sedimentos, rochas e areia). Na bacia do rio Verde Grande, um afluente do São Francisco, até 74% dos rios podem estar sendo afetados pela perda de vazão. Diferentemente do escoamento superficial — a água da chuva que escorre sobre o solo até alcançar os rios —, o fluxo de água refere-se àquela que já circula dentro do próprio leito do rio. Um estudo realizado em 2020 na Bacia do Rio São Francisco observou uma redução na vazão do rio, mesmo sem uma queda significativa na precipitação, sugerindo que a escassez de chuvas não é a principal causa da diminuição do fluxo.
Esse cenário aponta para uma tendência potencial preocupante: regiões onde os aquíferos são fortemente explorados por poços podem estar correndo o risco de perder água superficial para os reservatórios subterrâneos.

As bacias dos rios São Francisco e Verde Grande estão localizadas próximas ao coração agrícola do Brasil — o Matopiba (região de fronteira agrícola que abrange os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) — e são fundamentais para a economia do país, movida por commodities. Esses rios são essenciais para a irrigação, a produção de alimentos, a geração de energia e atividades culturais. Como um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, o sucesso agrícola do país depende fortemente da estabilidade desses sistemas fluviais. O estudo também chama atenção para os riscos à segurança hídrica do Brasil como um todo. Embora o país concentre 15% da água doce renovável do planeta, a má gestão ameaça esgotar esse recurso vital.
“A remoção excessiva de água subterrânea pode reduzir o fluxo de base de um rio, dependendo das condições climáticas e geológicas, impactando os usuários a jusante que dependem dessa água a longo prazo”, disse à Mongabay o autor principal do estudo, José Gescilam Uchôa, também da USP. “Isso pode afetar o consumo humano, a pecuária e a produção de alimentos, o que, por sua vez, impacta toda a sociedade.”
O especialista em gestão de recursos hídricos Ricardo Hirata, da USP, que não participou do estudo, disse à Mongabay que, embora a metodologia seja sólida, a pesquisa cobre apenas cerca de 5% do número estimado de poços no país — e que são necessários mais dados para conclusões definitivas.
“O estudo destaca o possível impacto da exploração dos aquíferos para os rios, mas são necessárias mais investigações e estudos locais para confirmar essas descobertas”, afirmou Hirata, que lidera o projeto Soluções Integradas de Água para Cidades Resilientes, conhecido pelo acrônimo Sacre. “A relação entre rios e aquíferos ainda é pouco explorada no mundo todo, especialmente no Brasil. Uma gestão eficaz dos recursos hídricos depende de uma compreensão mais aprofundada dessa conexão.”
Uso ilegal de poços
O estudo sugere que o uso generalizado de poços legais e ilegais no Brasil pode estar contribuindo para a perda potencial de água dos rios. Dos cerca de 3 milhões de poços estimados no país, aproximadamente 80% não são registrados e operam sem licenças, segundo Hirata. Juntos, esses poços não registrados extraem 17,6 bilhões de metros cúbicos de água por ano — volume suficiente para abastecer toda a população do país, embora sejam utilizados por menos de 20%.

Os poços são usados para irrigação agrícola, abastecimento de água potável e uso industrial. O Brasil regulamenta a perfuração de poços e a extração de água, mas entraves burocráticos e a falta de conscientização pública sobre a importância das águas subterrâneas contribuem para o descumprimento generalizado das leis. “A burocracia muitas vezes impede que as leis brasileiras funcionem na prática”, disse Uchôa. “Simplificar o processo — como permitir o registro online dos poços em uma plataforma centralizada — facilitaria a regularização.”
“Mas, se os obstáculos e o medo de multas persistirem, as pessoas continuarão encontrando formas de burlar o sistema”, acrescentou. “Aumentar a conscientização e garantir um caminho prático e legal poderia melhorar a situação.”
Implicações econômicas e ambientais
As águas subterrâneas são frequentemente negligenciadas pelo público e por profissionais da gestão de recursos hídricos, apesar de seu papel fundamental na manutenção de rios e áreas úmidas. Os aquíferos armazenam 97% da água doce do planeta; no Brasil, 90% dos rios estão conectados a aquíferos.
“Essa falta de conhecimento sobre as águas subterrâneas não apenas leva à superexploração, como o estudo pode sugerir, mas também esconde as oportunidades que elas oferecem à sociedade, à economia e ao meio ambiente — especialmente em um mundo que luta contra a escassez de água”, afirmou Hirata.
A redução do fluxo dos rios provoca impactos ambientais e sociais. Na Bacia do Rio São Francisco, os níveis mais baixos de água já causaram a intrusão de água salgada nas áreas costeiras, afetando a saúde dos ecossistemas locais e das populações humanas. No estado de Alagoas, por exemplo, o aumento da salinidade na água potável foi associado a problemas de saúde, como hipertensão, além de causar danos a plantas sensíveis ao sal.

“Após a investigação, [os pesquisadores] descobriram que isso foi causado pela redução do fluxo do rio para o mar, resultando em intrusão de água salgada”, explicou Oliveira. “A água do mar estava invadindo a costa, aumentando o teor de sal na água, gerando um problema de saúde pública.”
O impacto econômico potencial é igualmente significativo. A agricultura — especialmente no Cerrado e na bacia do São Francisco — é um dos principais motores da economia brasileira. O esgotamento dos fluxos fluviais pode comprometer a irrigação das lavouras e interromper toda a cadeia de valor agrícola, altamente dependente da disponibilidade constante de água. Além disso, as usinas hidrelétricas do país dependem de fluxos fluviais constantes para gerar energia, e a redução dos níveis de água pode ter efeitos adversos tanto na produção energética quanto na resiliência climática do país no longo prazo.
A expectativa é que a situação se agrave, já que a demanda por irrigação deve dobrar nos próximos 20 anos. As mudanças climáticas tendem a reduzir o volume de chuvas nas regiões Norte e Nordeste do país, enquanto outras áreas poderão enfrentar secas mais prolongadas, afetando rios e reservatórios de água superficial. Com a expansão agrícola elevando a demanda de água, Hirata afirmou que os aquíferos provavelmente se tornarão a principal fonte de abastecimento.
“As águas subterrâneas são mais resistentes à seca do que as águas superficiais, têm baixo custo de exploração e, geralmente, causam menor impacto ecológico. Por isso, espera-se um aumento na exploração dos aquíferos”, afirmou.

Entretanto, a exploração excessiva desses recursos vitais pode comprometer os ecossistemas, incluindo rios, mangues e pântanos. Para garantir o uso sustentável da água subterrânea, são necessários estudos detalhados que orientem uma gestão responsável, segundo Hirata. “É importante que estudos como este — ou outros ainda mais aprofundados — sejam realizados, para que possamos utilizar ao máximo as águas subterrâneas de forma sustentável e inteligente”, afirmou.
Sem a devida supervisão, os recursos hídricos subterrâneos e superficiais se esgotarão, disse à Mongabay Alexandra Suhogusoff, diretora do Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas da USP, que não participou do estudo. Os agricultores costumam recorrer às águas subterrâneas quando os recursos superficiais se tornam escassos, mas a fiscalização deficiente e a ausência de estudos hidrogeológicos aprofundados facilitam o uso excessivo, o que pode degradar a qualidade da água com sais e resíduos de agroquímicos, acrescentou.
“Não queremos demonizar a agricultura, pois a sociedade depende dela para sobreviver”, disse Suhogusoff. “Mas precisamos adotar uma abordagem mais rigorosa e eficiente na gestão desses recursos, aliada a práticas agrícolas mais sustentáveis e a processos econômicos melhor planejados. Só assim conseguiremos garantir a disponibilidade e a qualidade das águas subterrâneas e superficiais para as futuras gerações.”
Criando soluções
Os pesquisadores defendem uma abordagem integrada para a gestão das águas superficiais e subterrâneas. Além disso, um monitoramento hidrogeológico mais eficaz é essencial para acompanhar as mudanças nos níveis de água subterrânea e na dinâmica do fluxo dos rios. Os dados atuais sobre os recursos hídricos subterrâneos no Brasil ainda são limitados — há apenas cerca de 500 poços de monitoramento no país, em comparação com 18.000 nos Estados Unidos.
“Precisamos de investimento em ciência. Com esse investimento, poderemos criar medidas preventivas”, afirmou Uchôa. “Nosso estudo nacional é mais um alerta. Ele aponta as regiões que já enfrentam problemas. Precisamos de mais estudos locais.”
Esses estudos locais ajudarão a identificar riscos e a desenvolver ações preventivas, explicou. Por exemplo, se a pesquisa indicar que uma determinada região é especialmente vulnerável, as autoridades poderiam recomendar a restrição da perfuração de poços próximos a certos rios. No entanto, sem um monitoramento adequado e estudos locais, essas ações direcionadas continuam difíceis de implementar.
“Nosso principal desafio é garantir investimento de longo prazo. A pesquisa sobre recursos hídricos exige dados contínuos. Não basta medir hoje e só voltar a medir daqui a um ano”, disse Oliveira.
Imagem do banner: Sistema de irrigação por pivô central sendo usado em plantações de soja na Bahia. Esse sistema utiliza uma grande quantidade de água. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace.