Após décadas de invasões, contaminação ambiental e omissão do Estado, o povo Akroá Gamella retomou parte de seu território ancestral na Terra Indígena Taquaritiua, no Maranhão, e desativou lixões ilegais mantidos pelas prefeituras locais.
Por mais de 12 anos, resíduos hospitalares e urbanos foram despejados ilegalmente em nascentes da aldeia Tabarelzinho, em uma região que também é Área de Proteção Ambiental, com relevância ecológica reconhecida internacionalmente.
As retomadas Akroá Gamella restauram o território com práticas agroecológicas, reflorestamento de espécies nativas e recuperação de nascentes; enquanto isso, continuam enfrentando violência contínua.
Por mais de 12 anos, a prefeitura de Viana, no Maranhão, despejou agulhas e seringas em três nascentes da aldeia Tabarelzinho, na Terra Indígena Taquaritiua, do povo Akroá Gamella. Sobre essas fontes de água, a prefeitura despejou também garrafas de vidro, sacolas plásticas, latas, embalagens de isopor e fraldas usadas. Despejou algodões com sangue, fluidos contaminados, despejou tumores e outros itens de descarte hospitalar – que incluíam as agulhas e seringas.
Em dois terrenos contíguos dentro da aldeia Tabarelzinho, que somavam cerca de 25 mil metros quadrados, a prefeitura de Viana criou um lixão a céu aberto onde, por mais de 4.300 dias, espalhou o lixo que os mais de 50 mil habitantes do município produziram.
As moscas e o mau cheiro tomaram conta das casas dos Akroá Gamella por mais de uma década. Ao meio-dia, com o calor de dois sóis na cabeça – Viana é uma cidade quente e úmida, típica da região amazônica –, as famílias eram obrigadas a fechar portas e janelas para conseguir almoçar sem ter que disputar a comida com as moscas e nem misturar o sabor do alimento com o cheiro podre do lixo.
“Esse é o resultado do desenvolvimento dos homens brancos: a contaminação do nosso lençol freático, da água, de todas as espécies de vida. Várias pessoas já foram infectadas, já teve várias mortes relacionadas ao lixão, mas não tem visibilidade”, disse Cywr Xxa Akroá Gamella, que vive em uma aldeia próxima a Tabarelzinho, também na Terra Indígena Taquaritiua.

Os Akroá Gamella denunciaram o despejo ilegal do lixo por mais de uma década às autoridades públicas, mas elas nunca fizeram caso. E isso tem um agravante: o município de Viana está inserido na Área de Proteção Ambiental (APA) da Baixada Maranhense, que combina ricos e complexos ecossistemas, incluindo manguezais, babaçuais, campos abertos e inundáveis, estuários, lagunas e matas ciliares.
Por sua importância ecológica, no ano 2000, a APA foi reconhecida como Sítio Ramsar, uma definição geral para diferentes tipos de zonas úmidas, desde pantanais, várzeas, lagoas, planícies inundáveis, banhados e salinas até manguezais, lagunas e recifes de coral – áreas cuja riqueza e importância para a proteção e manutenção da fauna, da flora e da vida humana, merecem especial atenção em políticas nacionais e internacionais de conservação. O Brasil é signatário da Convenção Ramsar desde 1996.
Em 2024, a prefeitura de Matinha, município vizinho a Viana, também começou a despejar o lixo urbano de cerca de 23 mil pessoas no mesmo local, usando a casa ancestral dos Akroá Gamella como latrina pública. Os gestores do município arrendaram parte das terras em acordo com o invasor do território, o mesmo que arrendou parte dele para o lixão da prefeitura de Viana.
O invasor é um fazendeiro local, amigo de gente da política, dos cartórios e da polícia. Ele grilou as terras dos Akroá Gamella nos anos 1980, falsificando documentos e registrando como suas as terras que, pelo menos desde meados do século 18, estão documentadas como sendo dos indígenas.
Há mais de quatro décadas o grileiro tem lucrado sobre as terras dos Akroá Gamella com arrendamentos para terceiros e desmatamentos ilegais, além de tentar impedir, com violência, a permanência dos indígenas em seu próprio território. Há diversos relatos de derrubadas e incêndios de casas e escola, espancamentos, prisões arbitrárias e tiros disparados, tudo perpetrado pelo invasor e seus jagunços ao longo dos anos.
Com mais um lixão crescendo e contaminando suas casas, os Akroá Gamella decidiram que era hora de pôr fim às violências.
Em 28 de agosto de 2024, eles retomaram aquela parte do território, expulsaram o invasor e desativaram os lixões das prefeituras de Viana e Matinha.

Esperar para sempre ou retomar
Pelo menos desde os anos 1980, as retomadas feitas pelos Akroá Gamella no Maranhão têm sido a estratégia autônoma de resistência e permanência em seus territórios, diante do roubo de suas terras e da conivência do Estado brasileiro com ilegalidades e crimes.
A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), órgão federal responsável pela delimitação e demarcação dos territórios indígenas reclamados por diferentes povos no Brasil, é conhecida pela morosidade em executar suas funções determinadas por lei. Na esteira da lentidão, acontecem novas invasões às terras indígenas, agressões e assassinatos.
A justificativa oficial da Funai para a não demarcação costuma ser a falta de recursos e de profissionais que executem os trabalhos burocráticos. O processo de demarcação da Terra Indígena Taquaritiua teve início em 2014, mas ficou parado por anos, sendo retomado só agora, uma década depois, com o início dos estudos técnicos ambientais e de delimitação.
Em 2015, diante da morosidade da Funai e da urgência sempre crescente de terra para viver, plantar e existir, as insurgências do povo Akroá Gamella ganharam corpo. Nos últimos nove anos, foram retomadas das mãos de invasores e grileiros outras cinco partes da Terra Indígena Taquaritiua, que ocupa áreas dos municípios de Viana, Matinha e Penalva, na Amazônia maranhense.
O tamanho total do território, número de aldeias e quantidade de famílias está sendo contabilizado pela equipe da Funai, que está em campo realizando os estudos.

Devolver o descanso à terra
A retomada consiste, primeiramente, em retirar as cercas instaladas pelos invasores e expulsá-los das terras pela força de homens, mulheres, jovens e crianças, que marcham e cantam juntos território adentro em um dia previamente definido para isso. Tudo é feito de modo coletivo, após a deliberação em assembleias do povo orientadas pelos encantados, entidades espirituais que guiam, protegem e nutrem cada membro do povo Akroá Gamella.
Depois das cercas, a vida: retoma-se o cuidado da terra, em geral violentada por fazendeiros com monocultivos de grãos e pasto para o gado, além da pulverização de pesticidas. Os indígenas restituem à terra seu direito à saúde, tirando dela o lixo, as sementes transgênicas e os produtos químicos. Depois, restituem seu direito ao descanso: deixam ela repousar enquanto plantam espécies nativas arrancadas pelos fazendeiros, como pés de bacuri, palmeiras de coco babaçu, guarimã, buriti, mangueiras, juçareiras, cajueiros. Nos igarapés e nascentes assoreados, plantam espécies que ajudam no renascimento das águas, como as juçareiras e buritizeiros.
O povo Akroá Gamella vive de roças familiares, da pesca e da criação de pequenos animais, como porcos e galinhas. Hoje, alguns bois também ajudam no fornecimento de proteína.
Nas fazendas retomadas há mais tempo, a regeneração se vê de longe: o verde das árvores e o colorido das frutas da época tomam conta de paisagens antes estéreis. Igarapés e rios assoreados recuperaram não apenas a água, mas também os peixes. Animais que haviam sumido por causa do desmatamento voltam pouco a pouco ao território: tatus, pacas, cotias, coelhos, caititus e veados. Entre os pássaros, estão a juriti, a coruja, o sabiá, o tucano e o arapapá. Nas matas e nas águas que renascem, se fortalecem também os encantados. Tudo está ligado, envolvido.

O invasor não desiste
Não que seja fácil retomar uma terra. Cerca de duas semanas após a retomada de agosto de 2024, uma casa na aldeia Cajueiro-Piraí, no território Taquaritiua, foi atacada com tiros de arma de fogo. Era dia 15 de setembro, um domingo à noite, logo após uma queda de energia. Os tiros chegaram a acertar as camas onde os indígenas dormiam. Ninguém foi fisicamente ferido.
Dois dias antes do ataque, em 13 de setembro, os Akroá Gamella receberam áudios de um homem com ameaças de agressão. “Se fosse eu, mandava ‘dar uma taca’ [surra] naqueles vagabundos. Eles são vagabundos prejudicando a população de Viana inteira. Mandava ‘dar uma taca’ mesmo, o terreno não é deles”, disse o homem no áudio encaminhado.
Até agora, ninguém foi investigado ou punido pelo ataque.
O ado perambula pela rua
Estive pela primeira vez no território dos Akroá Gamella, em Viana, no início de 2019.
Fui ao encontro de dois indígenas, Aldeli e Zé Canário, para escrever uma reportagem mostrando como eles estavam dois anos após um violento ataque sofrido em 30 de abril de 2017. Naquele dia, uma turba com mais de 200 pessoas armadas com espingardas, paus e facões avançou contra um grupo de 30 indígenas que tentava realizar sua quinta retomada. Os criminosos foram atiçados por políticos – incluindo um deputado federal – e lideranças de igrejas evangélicas neopentecostais da região que têm interesse na grilagem das terras dos Akroá Gamella.
O ataque foi brutal. Dezenas de pessoas ficaram feridas, entre elas Aldeli e Zé Canário, que tiveram as mãos decepadas a golpes de facão. Na época do ataque, o então governador do Maranhão Flávio Dino – atual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) – negou que os indígenas tiveram as mãos decepadas, à revelia das evidências e do sofrimento dos dois homens agredidos. Nenhum dos envolvidos no episódio foi punido até hoje.
Em fevereiro de 2025, de volta ao território dos Akroá Gamella para reportar sobre a nova retomada e o fechamento do lixão, vi resquícios da barbárie de oito anos atrás. Dirigindo até a aldeia Tabarelzinho com Benedito Akroá Gamella ao meu lado, no banco do carona, ele me apontou, de um lado e de outro da rua por onde ávamos, duas pessoas que participaram do ataque contra seu povo em 2017.
“Aqueles estavam no massacre”, ele me disse, com a fala cheia de memória viva. Eram homens comuns, donos de pequenos comércios de alimentos, em um dia qualquer de trabalho. A aparente normalidade da nossa circulação entre os criminosos não resistia ao fato de que aqueles dois homens odeiam o povo Akroá Gamella, e tentaram ass alguns deles há oito anos. No mundo colonial, a paz é sorte, e a violência está sempre por um triz.
Caminhando com Benedito pelo lixão desativado há seis meses, vi a mata se insurgir saindo dos escombros à procura de sol e água, como a sobrevivente de uma guerra. Pouco a pouco, o verde volta a cobrir a terra. O igarapé começa a correr novamente, com a água menos escura de chorume. As chuvas do inverno amazônico estão lavando a terra e as nascentes, agora menos obstruídas com a paralisação da deposição de lixo pelas prefeituras.
Garrafas de vidro e muitas sacolas e embalagens plásticas ainda são vistas sobre e por dentro da terra. São cadáveres do progresso inconformados com seu destino. Não se entregarão facilmente. O plástico leva mais de 100 anos para se decompor; o vidro, mais de 10 mil anos.
“Talvez em 20 séculos isso aqui volte ao normal”, disse Cywr Xxa Akroá Gamella.
Às pessoas que defendem a terra, os povos indígenas apresentam formas de uma vida possível no mundo colonial: retomar territórios roubados pelos brancos, derrubar as cercas, recuperar a terra e cuidar para que ela e seus povos não se esqueçam do que é ser livre.
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A publicação desse texto é uma parceria com a organização alemã Salve a Floresta – Rettet den Regenwald e.V.
Imagem do banner: pele marcada com grafismos feitos com tintura de genipapo. Foto: Marciel Pires