No interior de São Paulo, um centro de conservação recria os sons, cheiros e perigos da Caatinga baiana para cuidar de araras-azuis-de-lear resgatadas do tráfico e prepará-las para voltar à natureza.
Apesar do aumento da população da arara-azul-de-lear para mais de 2.700 indivíduos, a espécie continua ameaçada pela perda de habitat, caça ilegal e tráfico; por isso, o processo de reabilitação é longo, cuidadoso e evita o contato com humanos para garantir a sobrevivência das aves após a soltura.
O trabalho envolve uma rede de especialistas nacionais e internacionais, aliando ciência, cuidado e vigilância contínua para garantir diversidade genética e sucesso na reprodução e reintrodução das araras — cada nascimento é um o contra a extinção.
Envolta pela neblina de poeira dos caminhos de terra batida e o cheiro de mato molhado, Araçoiaba da Serra acordava tímida. Era uma manhã quente e ensolarada naquele vasto pedaço de terra cercado, apartado de qualquer barulho e sinal da vida da cidade. Metros adiante do portão do Cecfau (Núcleo de Pesquisa e Conservação de Fauna Silvestre), Cauê Monticelli, coordenador de Fauna Silvestre da Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo (Semil) e parte da equipe me esperavam. “Bem-vindo à nossa maternidade”, disse ele em tom de brincadeira, apontando os viveiros, árvores e galpões que guardam o improvável: fragmentos de uma Caatinga reconstituída, aves ameaçadas, bichos feridos e esperanças em recuperação.
O centro funciona como um santuário. Localizado no interior de São Paulo, se especializou em acolher animais resgatados do tráfico e preparar seus descendentes para o mundo lá fora: mico-leão-preto (Leontopithecus chrysopygus), sagui-da-serra-escuro (Callithrix aurita), perereca-pintada-do-rio-pomba (Nyctimantis pomba) e uma das estrelas da casa, a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) – uma ave de aparência sedutora e existência frágil. Da cor azul de um céu de meio-dia, ela é uma sobrevivente: estima-se que houve menos de cem indivíduos em liberdade no final dos anos 1990. Hoje, graças a projetos como o do Cecfau, a população a dos 2 mil. Ainda assim, segue vulnerável, sempre a um o de desaparecer de novo.
Instalado a cerca de 90 quilômetros da capital paulista, o centro não está na Caatinga, mas se esforça para imitá-la. O cheiro da vegetação, a textura dos ninhos, o modo como o vento entra pelas frestas: tudo ali é pensado para relembrar, ou, apresentar, às araras o ambiente de onde vieram — e para o qual devem voltar. Segundo Cauê, as araras-azuis-de-lear que hoje vivem sob os cuidados do Cecfau foram resgatadas do tráfico de animais silvestres ou encontradas em situações de risco fora do habitat natural, muitas vezes em cativeiros ilegais. “Elas chegam debilitadas, machucadas ou emocionalmente comprometidas”, relatou ele. “Filhotes que não aprenderam com os pais a voar, se alimentar ou reconhecer predadores.”
Apesar de serem aves endêmicas da Caatinga baiana, o especialista explica que a estrutura da região de origem ainda não oferece as condições ideais para o tratamento apropriado que esses animais exigem. Isso se deve à escassez de centros com infraestrutura adequada, à falta de pessoal técnico especializado e às condições ambientais adversas, como o calor extremo e a instabilidade hídrica, que dificultam a manutenção da saúde das aves em recuperação.
“As araras são reintroduzidas em áreas consideradas seguras, como reservas, onde há fiscalização contínua e trabalho de conscientização com a comunidade local para reduzir os riscos de recaptura ou maus-tratos”, detalhou. “Essa estratégia faz parte de um plano nacional de conservação, que prevê que, enquanto a Caatinga não estiver suficientemente protegida, as araras possam viver e se reproduzir em áreas que garantam sua segurança e bem-estar, mesmo fora do habitat original. Não estamos tirando as araras da Caatinga. O Cecfau existe para que elas retornem para lá com melhores condições de sobrevivência.”

Revigoramento populacional
Embora o termo “reintrodução” seja frequentemente usado, o que ocorre no Brasil com as araras-azuis-de-lear é um processo de reforço ou revigoramento populacional. O principal objetivo é a tentativa de recuperar grupos praticamente extintos, como o do Parque Nacional do Boqueirão da Onça, no norte da Bahia. A soltura só acontece após um minucioso trabalho de mitigação de ameaças, como o tráfico de filhotes, antes comum na região, e a destruição do habitat para criação de gado.
Hoje, a área é protegida; conta com ações de educação ambiental junto a comunidades locais e com fiscalização constante, já que, mesmo considerando avanços, o tráfico ainda opera em rede organizada, com envolvimento estrangeiro. Em casos assim, o retorno das aves à natureza depende não só da recuperação, mas da garantia de segurança real e duradoura no território de origem.
A espécie que quase desapareceu atualmente viu o número subir para mais de 2.700 indivíduos, mas o risco continua. Com olhos cercados por anéis de pele amarela e uma plumagem azul-cobalto chamativa, a arara-azul-de-lear é alvo cobiçado do mercado ilegal. Reproduzi-la em cativeiro, cuidar dos filhotes e prepará-los para a soltura tornaram-se tarefas urgentes.
Foi essa urgência que motivou a criação do Cecfau, que começou a ser idealizado no início dos anos 2000, como iniciativa da antiga Fundação Parque Zoológico de São Paulo. A construção da infraestrutura teve início em 2004, dentro da chamada Fazenda do Zoológico, e o centro foi oficialmente inaugurado em 2015. Financiado com recursos da bilheteria do zoológico e do Zoo Safári, ambos na capital paulista, o projeto foi concebido com foco em ações de conservação, especialmente sob cuidados humanos, dentro do conceito de conservação integrada.
Em 2011, um workshop interno reuniu especialistas para definir critérios e selecionar espécies prioritárias para conservação ex situ, ou seja, fora de seu habitat natural. A arara-azul-de-lear foi uma das escolhidas e, em 2015, ocorreu no Cecfau o primeiro nascimento da espécie na América do Sul. O sucesso reprodutivo marcou um novo ciclo para o centro, permitindo ações de translocação de aves para a natureza. Hoje, a infraestrutura é concedida à iniciativa privada, mas a gestão da pesquisa e conservação continua sob responsabilidade do estado.
Mas entre a incubadora e a liberdade há um caminho longo, feito de cautela e contradições. Os filhotes são alimentados manualmente, com uma dieta que varia conforme a idade. Aos poucos, aprendem a bicar sozinhos, a abrir sementes, a usar o bico como apoio. Os técnicos os observam afastados. Evitam contato direto, evitam falar perto das aves. “Elas não podem se acostumar com os humanos. Precisam ter medo da gente para sobreviver lá fora”, argumentou Giannina Piatto Clerici, assessora técnica do centro, sobre a importância do trabalho com a espécie enquanto caminhamos pelo local e ela me deixa acompanhar o processo de alimentação.

Nem de longe parece fácil. A dedicação exigida no início da vida pode gerar vínculos — ainda que ageiros, comentou Giannina antes de entrarmos na sala para ver um filhote com três meses de vida. “Quando um filhote precisa de cuidado intensivo, alguém o leva para casa. A devolução ao centro é feita com o máximo cuidado. O trabalho exige doação, mas também distância.”
As araras-azuis-de-lear alimentam-se quase exclusivamente dos frutos da palmeira licuri, também em declínio. Quando o alimento some, elas voam para longe — e ficam vulneráveis. Quando a caça se intensifica ou as palmeiras viram carvão ou pasto, elas desaparecem.
O Cecfau atua como um elo entre o cativeiro e a reintrodução. Recebe filhotes resgatados de situações de tráfico, aves que nasceram em outros criadouros conservacionistas e exemplares saudáveis vindos da natureza para reprodução. Tudo é registrado, estudado, testado. O objetivo é garantir diversidade genética e fortalecer os grupos antes da soltura. O lugar abriga 15 araras de várias idades. Já foram, segundo Cauê, “cinco levas de soltura no Boqueirão da Onça. E já estão se reproduzindo os animais da primeira leva de soltura. Inclusive grande parte das araras que vão ser soltas este ano são de tráfico.”
Cuidado e convivência
“A soltura não é o fim do processo”, observou Cauê. “Antes disso, os animais am por uma fase de aclimatação: aprendem a voar longas distâncias, a fugir de predadores e a identificar alimentos. São monitorados e acompanhados por equipes de campo. Às vezes, voltam para o viveiro. Outras vezes, se adaptam e formam pares. O sucesso de uma soltura não se mede em dias, mas em gerações.”
Entre os corredores do centro, o silêncio é parte do protocolo. Por descuido involuntário, fui surpreendido pedindo voz baixa. Nas salas internas, as incubadoras mantêm temperatura e umidade constantes. Cada filhote recebe um código de identificação e um nome. “É uma forma de lembrarmos, apesar de que eles não são nossos. São da Caatinga”, afirmou o coordenador.
O trabalho ali se mistura a outras frentes de conservação. A equipe é pequena, mas articulada com redes nacionais e internacionais de proteção à biodiversidade. Há intercâmbio com criadouros da Europa e da América do Norte, por exemplo, e com zoológicos e universidades. A missão é coletiva, mas começa com o som de um filhote aprendendo a bicar.
Apesar dos avanços, os desafios permanecem. A Caatinga continua sob ameaça. A caça ilegal persiste. O tráfico de animais ainda movimenta cifras vultosas. E as araras, mesmo as que já voam livres, dependem da existência de palmeiras licuri — cada vez mais raras.
Giannina me guiou até um dos viveiros. “É ali que estão os casais”, apontou discretamente. Dentro, um casal de araras-azuis observava nossa aproximação com a atenção de quem já viu o pior. “Quanto menos vínculo, melhor”, salientou. Ela discorre sobre a linha tênue que separa o cuidado de convivência. Em alguns casos, quando um filhote recém-nascido exige atenção ininterrupta, o único jeito é levá-lo para casa. Giannina já fez isso – virou mãe de aluguel. Mas sempre com o freio puxado. “Não pode nem olhar. A gente precisa que eles tenham medo de gente, para sobreviver lá fora.”

Construção coletiva
O Cecfau integra uma teia de instituições e profissionais que inclui biólogos, veterinários, tratadores e técnicos em fauna. No viveiro de treinamento, o vento corre livre, mas o horizonte ainda é de tela. “Aqui é o meio do caminho”, disse Cauê. “Elas ainda não sabem, mas estão sendo preparadas para partir.” Antes da soltura, as aves am por exames, quarentenas e avaliações comportamentais. Uma arara só é considerada apta se demonstrar total autonomia: voar bem, comer sozinha e evitar humanos. A reintrodução é feita em grupo, com indivíduos que convivem previamente no centro. A adaptação dura semanas – um lento descongelar do instinto.
Enquanto o coordenador mostrava os bastidores do trabalho, mencionava um casal de araras resgatadas do tráfico, que hoje forma um dos pares reprodutivos mais bem-sucedidos do centro. Eles tiveram quatro filhotes. Um deles, o qual conheci, nascido em janeiro de 2025, virou símbolo de resistência. “Cada nascimento é uma vírgula no fim da frase ‘extinção’”, disse. Muitos animais chegam mutilados, doentes, com traumas severos. Há os que não voltam a voar. Para esses, o Cecfau oferece um tipo diferente de liberdade: a estabilidade de um ambiente seguro, onde possam viver sem dor e colaborar com as reproduções. A equipe cuida de cada um como se fosse o último.
A conservação, nesse caso, não é um gesto heroico, mas uma rotina: seringas, anotações em cadernos, observações, escutas. É preciso registrar cada movimento, cada dieta, cada tentativa de voo. E, acima de tudo, resistir à tentação de romantizar. Mesmo diante dos quiproquós, o centro tem acumulado vitórias. Desde a fundação, mais de uma dezena de araras-azuis-de-lear nasceram no Cecfau e foram integradas aos esforços de reintrodução na Bahia. A taxa de sobrevivência é alta – resultado do rigor técnico e da recusa em humanizar os animais.
Em tempos de colapso ambiental e degradação acelerada, o gesto de devolver uma arara ao céu parece pequeno. Mas talvez seja exatamente isso que torna iniciativas como o Cecfau tão necessárias. É um lugar onde se luta contra o desaparecimento com o que se tem: paciência, ciência e uma dose controlada de afeto. Ali, entre viveiros e árvores replantadas, a beleza do sertão ainda se faz presente. Em silêncio, em azul.
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Imagem do banner: Arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). Foto: Mike Peel (www.mikepeel.net)., CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons